domingo, 26 de agosto de 2018

HÁ UMA ORDEM IMUTÁVEL NA NATUREZA E O CONHECIMENTO A REFLETE


        
Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.
Comte
Auguste Comte nasceu na França (Montpellier) em 1798, viveu grande parte da sua vida em Paris, onde morreu em 1857. Estudou na Escola Poli técnica de Paris e medicina em Montpellier, mas não terminou nenhum dos cursos, tendo feito boa parte de seus estudos por conta própria. Durante sua vida, tentou, mas não conseguiu, ser admitido como docente permanente na Escola Politécnica. Desenvolveu várias atividades para sobreviver; foi professor particular, tutor, examinador da Escola Politécnica e, por vários anos (1817-1824), conviveu e foi secretário de Saint Simon com quem rompeu por discordar do rumo que suas ideias tomaram.

Comte publicou vários livros e fez conferências públicas, bem como conferências a cientistas, que não lhe renderam dinheiro, mas que tinham como objetivo tornar conhecida sua filosofia e arrebentar-lhe adeptos. Foram, em parte, esses objetivos que lhe garantiram o sustento, por meio de contribuições. Dentre essas conferências, foram importantes as conferências públicas de astronomia, destinadas ao público leigo (e aos trabalhadores, especial mente), que tinham a preocupação pedagógica de, por meio do estudo da mais avançada das ciências, ensinar que o universo e a sociedade eram submetidos a leis invariáveis, eram ordenados. Também importantes foram as conferências que deram origem aos volumes assim igualmente intitulados Curso de filosofia positiva, dirigidas a um público de cientistas e que tinham como objetivo dar a conhecer a sua filosofia.
Em 1845, Comte conheceu Clotilde de Vaux que morreu um ano de pois, de quem se tomou amigo e que marcou profundamente seus últimos trabalhos. Atribui-se à admiração de Comte a Clotilde de Vaux muitos dos aspectos contidos na sua proposta de uma Religião da humanidade, como o papel que aí atribui à mulher em geral, e a Clotilde (que ocupa lugar de destaque nos ritos religiosos previstos) em particular.
Dentre seus livros publicados, destacam-se: Curso de filosofia positiva (cujo primeiro volume foi publicado em 1830 e o sexto e último em 1842), Tratado elementar de geometria analítica (1843), Tratado filosófico de astronomia popular (1844), A política positiva (1851-4), Catecismo positivo (1854) e Síntese subjetiva ou sistema universal de idéias sobre o estado normal da humanidade (1856).
Comte vive na França num momento pós-revolucionário, quando a burguesia havia ascendido ao poder. Na primeira metade do século XIX, a luta pela manutenção do poder, por parte da burguesia, e pela sua tomada, por parte de uma crescente classe de trabalhadores, desencadeia não apenas uma série de convulsões sociais e políticas, mas também um conjunto de ideologias e sistemas que tem por objetivo dar sustentação aos vários setores em luta.
Comte toma o partido da parcela mais conservadora da burguesia, que defendia um regime ditatorial e não parlamentarista e que buscava criar as condições para se fortalecer no poder e impedir quaisquer ameaças, identificadas com todas as tentativas democratizantes ou revolucionárias. Nesse sentido, sua proposta de uma filosofia e de reforma das ciências tem como objetivo sustentar essa ideologia, e suas idéias de reforma da sociedade e até de uma nova religião são coerentes com essa visão.
Apesar do pensamento de Comte parecer ser uma resposta às condições históricas específicas do capitalismo francês do século XIX, os lemas positivistas que emergem do pensamento de Comte difundiram-se além das fronteiras francesas, chegando a influenciar a política (e a sociedade) de países em situação histórica bastante diferente da França. Tal é o caso do Brasil, como o reconhecem não apenas autores brasileiros, mas, de uma maneira geral, vários estudiosos de Comte:

No fim dos anos 1840 uma Sociedade Positivista foi findada e desde então a doutrina de Comte começou a ganhar adeptos. De acordo caiu o próprio plano de Comte, a Sociedade tornou-se mais e mais um tipo de religião secular com seu próprio ritual; alguma coisa disto sobrevive até hoje na França, embora tenha preservado sua maior fertilidade no Brasil. (Kolakowski, 1972, p. 63).
A seita religiosa praticamente não chega a se propagar na França. Mas o amálgama político ideológico da religião positivista lançara raízes na América Latina: no Brasil, no Chile, no México. A revolução brasileira de 1889 será obra das seitas positivistas: desde então a bandeira brasileira tem a divisa Ordem e Progresso. Benjamin Constant, o ministro da Instrução Pública nessa época, reforma o ensino de acordo com os pontos de vista de Comte. (Verdenal, 1974, p. 234)

Apesar de ser discutível (e isso tem sido analisado por autores brasileiros) o peso do positivismo para o estabelecimento da República no Brasil, é inegável seu papel, pelo menos no que diz respeito à influência de alguns homens que abraçavam o positivismo e que foram importantes nesse momento histórico. Tal é o caso de Benjamin Constant e dos militares brasileiros, que estavam convencidos de que os ideais positivistas serviriam de modelo às reformas políticas, sociais e econômicas que então se processavam.
Maar (1981) afirma que, embora não se possa atribuir influência decisiva ao movimento positivista ortodoxo na instalação da República, as idéias positivistas influenciaram o seu estabelecimento e até, em alguns casos, algumas medidas institucionais. Exemplo disto seria a constituição gaúcha de 1891 que estabelece, entre outras coisas, algumas medidas trabalhistas que objetivavam integrar o trabalhador à sociedade, a possibilidade de permanência indefinida no governo do chefe de estado e poderes muito limitados à assembleia. Maar lembra ainda que o ideário positivista esteve, e talvez ainda esteja, presente no Brasil: nas idéias que pregam a necessidade de um estado forte, a necessidade dos militares como um poder moderador, nas idéias que apontam como desvios perigosos o não reconhecimento de uma pretensa harmonia entre as classes sociais, nas idéias que, portanto, acabam por privilegiar a força sobre a lei. E, acima de tudo, tais idéias estão representadas até hoje no lema da bandeira brasileira, Ordem e Progresso, que ainda permeia muito a ideologia nacional.
Se as concepções políticas de Comte são indispensáveis para se compreender a influência que exerceu na elaboração de determinadas posturas políticas, a influência de sua obra no pensamento moderno e contemporâneo não se restringe a tais concepções. Comte elabora, também, uma proposta para as ciências, pretende ser o fundador de uma nova ciência, a sociologia (termo que ele cunhou), e funda uma religião. A compreensão das propostas de Comte e de sua influência depende da compreensão de cada um desses aspectos e, principalmente, do entendimento da totalidade de seu pensamento.
Vários estudiosos de Comte vêem uma ruptura entre sua proposta para a ciência e a proposta de uma religião como base de uma pretensa reforma social. Acreditam que suas posições antimetafisicas e antiteológicas, no que se refere ao conhecimento científico, não são compatíveis com sua proposta de uma religião. Indubitavelmente, sua influência posterior contou com adeptos que só assumiram seu cientificismo, e com seguidores que assumiram toda sua proposta. No entanto, outros estudiosos de Comte enfatizaram que esse fato (a aceitação apenas de suas idéias a respeito da ciência) não revela, em si, uma incoerência no pensamento do próprio Comte (mas revelaria condições históricas específicas a que estariam submetidos seus seguidores). Tais estudiosos afirmam que suas propostas de reforma social e de uma religião da humanidade são consequências necessárias que estão contidas em suas propostas para a ciência; são o corolário necessário de suas crenças políticas; de sua visão de história como um progresso contínuo do conhecimento e do espírito humano, progresso apenas possível com e dentro de uma ordem ab soluta; e de sua visão de uma natureza absolutamente ordenada segundo leis invariáveis. Esses estudiosos vêem, assim, as idéias de Comte como um sistema unitário no qual, segundo Verdenal (1974),
Em última análise o positivismo é a fórmula filosófica que permite transmutar a ciência em religião: a ciência, desembaraçada de todo além teórico da especulação, converte-se em religião despojada de perspectiva teológica e reduzida aos fatos da prática religiosa: os ritos sociais. (p. 24S)
A palavra positivo e os significados a ela associados marcam diversos temas discutidos por Comte, como a história, a filosofia, a ciência e a religião.
Considerada de início em sua acepção mais antiga e comum, a palavra positivo designa real, em oposição a quimérico. Desta ótica convém plenamente ao novo espírito filosófico, caracterizado segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente acessíveis a nossa inteligência (.). Num segundo sentido muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental indica o contraste entre útil e ocioso. Lembra, então, em filosofia, o destino necessário de todas as nossas especulações sadias para aperfeiçoamento contínuo de nossa verdadeira condição individual ou coletiva, em lugar da vã satisfação de uma curiosidade estéril. Segundo uma terceira sign usual essa feliz expressão é, frequentemente, empregada para qua1 a oposição entre a certeza e a indecisão. Indica, assim, a aptidão característica de tal filosofia para construir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar destas dúvidas indefinidas e destes debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com a precedente, consiste em opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico a obter em toda a parte o grau de precisão com patível com a natureza dos fenômenos e conforme as exigências de nossas verdadeiras necessidades (..). E preciso, enfim, observar especialmente urna quinta aplicação, menos usada que as outras, embora igualmente universal, quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo. Sob este aspecto, indica urna das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar. (Discurso sobre o espírito positivo, 1 parte, V)
Além desses cinco atributos, Comte acrescenta mais um significado ligado, embora não diretamente, à palavra positivo, e que, para ele, deve marcar tal pensamento.
O único caráter essencial do novo espírito filosófico, não ainda indicado diretamente pela palavra positivo, consiste em sua tendência necessária a substituir, em todos os lugares, absoluto por relativo. (Discurso sobre o espírito positivo, l parte, VII)
Comte supõe, no entanto, que o pensamento nem sempre foi marcado por essas características. O pensamento positivo, que ele considera já existir, no século XIX, em vários ramos do conhecimento (e que o próprio Comte acreditava estar trazendo para o último ramo do conhecimento — a sociologia) é visto como fruto de uma longa história do desenvolvimento do pensamento. Esse desenvolvimento expressaria uma lei necessária de transformação do espírito humano, que Comte chama de lei dos três estados, segundo a qual, numa sucessão necessária, o pensamento humano passaria por três momentos, três formas de conhecimento, sendo caracterizado, em cada estado, por aspectos diferentes, até atingir, no seu último momento, o estado positivo. Com- te, embora expresse essa lei como absoluta, já que todas as áreas do conhecimento humano assim se desenvolveriam, não acredita que todas as áreas do conhecimento se desenvolvam concomitantemente e vê nessa lei uma regra da história do desenvolvimento da humanidade e uma regra da história do desenvolvimento do indivíduo.
Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessiva- mente, e em cada uma das suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente d e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição.
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.
No estado, metafísico, que no fundo nada mais é do que si modo geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (‘abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do uni verso, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, as relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzidas então a seus lermos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.
O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é suscetível quando substituiu, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que primitivamente tinham sido imaginadas. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessam; apesar de ser muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares dum único fato geral, como a gravitação o exemplifica (Curso de filosofia positiva, l lição, II)
A lei dos três estados carrega consigo, ou expressa, uma concepção de história. Comte fundamenta suas noções da positiva filosofia e do espírito positivo na noção de que esse estado é decorrência de uma evolução histórica. Essa evolução é vista por ele como o desenvolvimento do espírito e do conhecimento, e, apenas como consequência dessa transformação, desenvolvem-se, então, as condições materiais e as instituições sociais. A história é vista como uma evolução necessária, no sentido de que os vários estágios e momentos têm de ser preenchidos necessariamente, e como uma evolução linear que implica sempre a superposição, o melhoramento, mas, jamais, rupturas, revoluções. A história, também, para Comte, percorre um caminho que é predeterminado no sentido de que cada estado leva ao outro e no sentido de que seu fim está, também, desde o início estabelecido.
O espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, é o único a poder representar convenientemente todas as grandes épocas históricas como tantas fases determinadas duma mesma evolução fundamental, onde cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte, segundo leis invariáveis que fixam sua participação especial na progressão comum, de maneira a sempre permitir, sem maior inconsequência do que parcialidade, fazer exata justiça filosófica a qualquer sorte de cooperação. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
A história é vista, assim, como um conjunto de fases imóveis em si mesmas, que num contínuo se substituem urnas às outras, de forma que cada estágio é superior ao anterior, decorrência necessária deste e preparação, também necessária, para o próximo estágio, até que se chegue, finalmente, ao estado superior.
Sob outro aspecto considera sempre o estado presente como resultado necessário do conjunto da evolução anterior, de modo afazer constantemente prevalecer a apreciação racional do passado no exame atual dos negócios humanos — o que logo afasta as tendências puramente críticas, incompatíveis com toda sadia concepção histórica. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
A história transforma-se num desenrolar que é guiado por dois princípios básicos. O princípio de ordem — de urna transformação ordenada e ordeira, que não comporta transformações violentas, que não comporta saltos, que flui num contínuo. E o princípio do progresso — a transformação que ocorre no desenrolar da história é uma transformação que leva a melhora mentos lineares e cumulativos. Nesse sentido, a história que se resume ao desenvolvimento, ao progresso linear e segundo uma ordem preestabelecida e que nada mais é que o desenvolvimento do espírito e do pensamento segundo leis também preestabelecidas é explicada (e compreendida) pela mera apresentação de suas fases. Nessa visão de história cabe ao homem apenas o papel de resignação: é preciso aguardar o desenvolvimento e aguardá-lo respeitando sua ordem natural, seu tempo, seus limites, num processo de espera que é, ele também, ordeiro.
Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e,,. reciprocamente o progresso vem a se, a meta necessária da ordem; como no mecanismo animal, o equilíbrio e a progressão são mutua mente indispensáveis, a título de fundamento ou destinação. (Discurso sobre o espírito positivos 2 parte, X)
Esses dois princípios de ordem e de progresso, são inseparáveis entre si: (...) o progresso constitui, como a ordem, uma das duas condições fundamentais da civilização moderna  (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, IX), eles permeiam não apenas a visão de história e a concepção de sociedade de Comte, mas também sua concepção de ciência.
Ao discutir o conhecimento no seu estágio positivo, Comte erige o conhecimento que é científico no conhecimento real, útil, preciso, certo, positivo e, nesse sentido, o erige no conhecimento que o homem deve buscar para que possa não apenas reconhecer a ordem da natureza, mas, também, nela interferir em seu benefício. Trata-se, então, de discutir quais as bases desse conhecimento. E Comte encontra esses fundamentos nos fatos, afirmando que o conhecimento científico é real porque o conhecimento científico parte do real, parte dos fatos tal como se apresentam e que, de resto, apresentam-se ao homem tal como são. Para ele, não se podem discutir os mecanismos que permitem ao homem conhecer (e tal discussão não passaria de um retorno à teologia ou à metafísica). Tudo o que se pode estudar são as condições orgânicas — fisiologia, anatomia — que levam ao conhecimento e os ‘processos realmente empregados para obter os diversos conhecimentos exatos que (o hotnein) já adquiriu (Curso de filosofia positiva, l lição, VIII).
Assim, para Comte, trata-se de descobrir que métodos os homens têm empregado para chegar ao conhecimento, para, desses métodos, extrair sua base correta. Comte descobre essa base metodológica nos fatos, agora desprovidos de quaisquer roupagens que o obrigue a discuti-los em sua relação com o sujeito que produz conhecimento.
Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência. (Curso de filosofia positiva, 1 lição, III)
Circunscreve seus esforços ao domínio, que agora progride rapidamente, da verdadeira observação, única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados a nossas necessidades reais. A lógica especulativa tinha até então consistido em raciocinar, de maneira mais ou menos sutil, conforme princípios confusos que, não comportando qualquer prova suficiente, suscitavam sempre debates sem saída. Reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os princípios que emprega são apenas fatos verdadeiros, somente mais gerais e mais abstratos do que aqueles dos quais deve formar o elo. Seja qual for, porém, o modo, racional ou experimental, de proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica. (Discurso sobre o espírito positivo, P parte, III)
Comte, entretanto, não supõe que a mera acumulação de fatos leve à ciência e, fazendo o que acredita ser uma crítica ao empirismo, assume que os fatos acumulados, que são a base e a origem do conhecimento, só se transformam em conhecimento científico porque o homem OS relaciona a hipóteses, por meio do raciocínio. Assim, para ele, os fatos são acumulados pela observação, mas essa observação é submetida à imaginação que permite relacionar tais fatos; relacioná-los para que se estabeleçam as leis gerais e invariáveis a que esses estão submetidos.
A pura imaginação perde assim, irrevogavelmente, sua antiga supremacia mental, e se subordina necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal, em cessar, entretanto, de exercer, nas especulações positivas, oficio capital e inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação definitiva ou provisória. Numa palavra, a revolução funda mental, que caracteriza a virilidade de nossa inteligência, consiste essencial- mente em substituir em toda parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas pela simples pesquisa das leis, isto é, relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores quer dos mais sublimes efeitos, do choque ou da gravidade, do pensamento ou da moralidade, deles só podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar no mistério de sua produção. (Discurso sobre o espírito positivo, 1 parte, III)
O conhecimento científico é, portanto, para Comte, baseado na observação dos fatos e nas relações entre fatos que são estabelecidas pelo raciocínio. Essas relações excluem tentativas de descobrir a origem, ou uma causa subjacente aos fenômenos, e são, na verdade, a descrição das leis que os regem. Comte afirma: Nossas pesquisas positivas devem essencialmente reduzir-se, em todos os gêneros, à apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir sua primeira origem e seu destino final (Discurso sobre o espírito positivo, la parte, III).
As leis dos fenômenos devem traduzir, necessariamente, o que ocorre na natureza e, como dogma, Comte parte do princípio de que tais leis são invariáveis.
Para Comte, o conhecimento científico seria constituído por um conjunto de leis: Nas leis dos fenômenos consiste realmente a ciência (...) (Discurso sobre o espírito positivo, la parte, III). A descoberta das leis tem por objetivo básico satisfazer a curiosidade humana
(..) as ciências possuem, antes de tudo, destinação mais direta e elevada, a saber, a de satisfazer a necessidade fundamental sentida por nossa inteligência, de conhecer as leis dos fenômenos. (Curso de filosofia positiva, P lição, III)
Além desse objetivo fundamental do conhecimento positivo, este deve, também, ser útil: (..) ciência, daí previdência: previdência, daí ação (Curso de filosofia positiva, P lição, III).
Esses aspectos relativos ao conhecimento científico são, assim, explicitados pelo próprio Comte:
Ora, considerando a destinação constante dessas leis, pode-se dizer, sem exagero algum, que a verdadeira ciência, longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar, quanto possível, a exploração direta, substituindo-a por essa previsão racional que constitui, sob todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos nos fará sentir claramente. Tal previsão, consequência necessária das relações constantes descobertas entre os fenômenos, não permitirá nunca confundir a ciência real com essa vã erudição, que acumula maquinalinente fatos sem aspirar a deduzi-los uns dos outros. Esse grande atributo de todas as nossas especulações sadias não interessa menos à sua utilidade efetiva do que à sua própria dignidade; pois a exploração direta dos fenômenos acontecidos não bastará para nos permitir, todo acontecimento, se não nos conduzisse a prevê-los convenientemente. Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste, sobretudo, em ver para crer, em estudar o que é a fim de concluir disso o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais. (Discurso sobre o espírito positivo, 1’ parte, III)
O conhecimento científico positivo, que estabelece as leis que regem os fenômenos de forma a refletir o modo como tais leis operam na natureza, tem, para Comte, ainda, duas características: é um conhecimento sempre certo, não se admitindo conjecturas, e é um conhecimento que sempre tem algum grau de precisão, embora esse grau varie de ciência para ciência, dependendo do seu objeto de estudo. Assim, Comte reforça a noção de que o conheci mento científico é um conhecimento que não admite dúvidas e indeterminações e o desvincula de todo conhecimento especulativo.
Se, conforme a explicação precedente, as diversas ciências devem necessariamente apresentar uma precisão muito desigual não resulta dai, de modo algum, sua certeza. Cada uma pode oferecer resultados tão certos como qualquer outra, desde que saiba encerrar suas conclusões no grau de precisão que os fenômenos correspondentes comportam, condição nem sempre fácil de cumprir numa ciência qualquer, tudo o que é simplesmente conjectural é apenas mais ou menos provável, não está aí seu domínio essencial; tudo o que é positivo, isto é, fundado em fatos bem constatados, é certo — não há distinção a esse respeito. (Curso de filosofia positiva, 2’ lição, XI)
No entanto, embora assumindo que o conhecimento científico é certo, Comte o afirma, também, relativo. O conhecimento é relativo porque os homens só o alcançam na medida de suas possibilidades, isto é, limitados pelo seu aparato sensorial, que não lhes permite a tudo perceber, a tudo observar. E relativo, ainda, porque, para Comte, o conhecimento, medido por sua utilidade, transforma-se e incorpora novos conhecimentos, levando, assim, a seu desenvolvimento, permitindo ao homem sua utilização mais ampla e a descrição de mais fatos; embora não lhe permita descrever tudo o que há.
(..) importa, ademais, sentir que esse estudo dos fenômenos, ao invés de poder de algum modo tornar-se absoluto, deve sempre permanecer relativo à nossa organização e à nossa situação. Reconhecendo, sob esse duplo aspecto, a imperfeição necessária de nossos diversos meios especulativos, percebe-se que, longe de poder estudar completamente alguma existência efetiva, de modo algum poderíamos garantir a possibilidade de constatar assim, ainda que mui to superficialmente, todas as existências reais, cuja maior parte talvez deva nos escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos esconder radicalmente uma ordem inteira de fenômenos naturais, cabe pensar, reciprocamente, que a aquisição de um sentido novo nos desvendaria uma classe de fatos, de que não temos agora idéia alguma, a menos de crer que a diversidade dos sentidos, tão diferentes entre os principais tipos de animalidade, se encontre levada, em nosso organismo, ao mais alto grau que possa exigir a exploração total de nosso mundo exterior, suposição evidentemente gratuita e quase ridícula.
(..) Se portanto, sob o primeiro aspecto, se reconhece que nossas especulações devem sempre depender tias diversas condições essenciais de nossa existência individual, é preciso igualmente admiti,; sob o segundo, que não estão menos subordinadas ao conjunto da progressão social, de maneira a nunca poder comportar essa fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fundamental da Humanidade consiste, a esse respeito, em que nossas teorias tende,, cada vez mais, a representar exatamente os assuntos exteriores de nossas constantes investigações, semi que entretanto a verdadeira constituição de cada um deles possa, em caso algum, ser plenamente aprecia da. A perfeição científica deve limitar-se à aproximação desse limite ideal, tanto quanto o exigem nossas diversas necessidades reais. (Discurso sobre o espírito positivo, 1’ parte, III)
É interessante notar que a defesa do caráter relativo do conhecimento parece incoerente com outras afirmações de Comte. Ao discutir as características do aparato sensorial dos homens, Comte introduz a presença do sujeito que produz o conhecimento. E esta é uma questão que Comte explicitamente afirma querer evitar, uma vez que abre a discussão sobre o papel da subjetividade na produção de conhecimento, O outro aspecto apontado por Comte como constituindo o caráter relativo do conhecimento, que é a trans formação que o conhecimento, sofre no sentido de seu aprimoramento, parece indicar os limites que o termo relativo tem na concepção de Comte: ao afirmar a relatividade do conhecimento, apelando para sua transformação e desenvolvimento no decorrer da história, Comte, num certo sentido, absolutiza o conhecimento porque supõe esse desenvolvimento como linear e sempre progressivo.
Mais do que isto, segundo Bréhier (1977b) e Kolakowski (1972), o reconhecimento de que o conhecimento científico é relativo às necessidades cotidianas é o que permite a Comte retirar do conjunto do conhecimento científico os resultados que lhe parecem incompatíveis com aquilo que ele acredita ser a ordem da natureza que tais conhecimentos deveriam expressar. Comte recusa-se, por exemplo, a aceitar a teoria da evolução, já que esta impede classificações permanentes. Bréhier afirma: Comte condena estas pesquisas como sendo contrárias à positividade verdadeira (...) as pesquisas que podem ser feitas fora dos limites da experiência corrente são inúteis e, ademais, infinitas (p. 264).
Kolakowski (1972) vai além e afirma:
Aquelas áreas do mundo que permitem apenas classificações fluidas, que revelam transições qualitativas contínuas ou quaisquer características enigmáticas, perturbam-no e irritam-no (...). Comte é um fanático no que diz respeito à busca de uma ordem definitiva e eterna. (p. 77)
A noção de ordem remete à noção de organização e aqui se chega a uma última característica dentre as levantadas por Comte como pertencentes ao pensamento positivo e, portanto, pertencentes também, inevitavelmente, à ciência. E nesse sentido que se deve compreender a afirmação de Comte de que o pensamento positivo se opõe ao negativo (à crítica) porque busca não destruir, mas organizar. Para organizar o conhecimento é necessário supor uma ordem preexistente; mais que isto, a ordem do conhecimento deve supor, por princípio, uma ordem, também, na própria natureza. A natureza é com posta, para ele, por classes de fenômenos ordenados de forma imutável e inexorável e cabe à ciência, apenas, apreender e descrever tal ordem.
(..) todos os acontecimentos reais, compreendendo os de nossa própria existência individual e coletiva, estão sempre sujeitos a relações naturais de sucessão e de similitude essencialmente independentes de nossa intervenção. (..) Embora essa ordem lenha sido ignorada por muito tempo, seu império inevitável nem por isso dele de tender a regulai sem que quiséssemos, toda nossa existência, primeiro, ativa, e, em seguida, contemplativa ou mesmo afetiva. Na medida em que a conhecemos, nossas concepções se tomaram menos vagas, nossas inclinações menos caprichosas, nossa conduta menos arbitrária. Desde que aprendemos seu conjunto, tende a regularizar, em todos os gêneros, a sabedoria humana, apresentando sempre nossa economia art como um judicioso prolongamento dessa irresistível economia natural. Esta é preciso estudar e respeitar, para chegar a aperfeiçoá-la. Mesmo naquilo que nos oferece de verdadeiramente fatal, isto é, de não modificável, essa ordem exterior é indispensável para a direção de nossa existência, a despeito das recriminações art de tantas inteligências orgulhosas. (..) Incapazes de criar, só sabemos modificar, em nosso proveito, uma ordem essencialmente superior à nossa influência. Supondo possível a independência absoluta, sonhada pelo orgulho metafísico, percebemos logo que, longe de melhorar nosso destino, ela impediria todo florescimento real de nossa existência, até mesmo privada. (Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, p. 110)
Esses trechos deixam clara a completa recusa de Comte em admitir a indeterminação ou acaso em qualquer fenômeno da natureza, e Comte afirma ser
(...) aberração radical de quase todos os geômetras atuais (..) o pretenso cálculo do acaso, em que se supõe necessariamente que os fatos correspondentes não seguem lei alguma. (Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, p. 109)
Entretanto, Comte supõe graus de possibilidade diferentes do homem intervir nessa natureza rigidamente ordenada. Essa possibilidade é maior em relação aos fenômenos referentes à existência do homem (individual ou coletiva) e menor em relação aos fenômenos não diretamente vinculados à existência humana, chegando a zero na astronomia, que diz respeito aos fenômenos mais gerais da natureza e, também, mais distantes do homem. Porém, mesmo as modificações possíveis não passam, para Comte, de modificações secundárias nos fenômenos, já que não criam uma nova ordem e não podem alterar a lei que rege os fenômenos. Por isto, Comte enfatiza e critica a falsa noção que essas transformações secundárias frequentemente geram. A noção de que, se é possível controlar e transformar fenômenos, estes não seriam, então, sujeitos a leis imutáveis. Partindo dessas noções de ordem na natureza e da imutabilidade de suas leis e de uma consequente ordenação do conhecimento, Comte propõe uma classificação para as ciências. Essa classificação está fundamentada no que concebe como sendo o objetivo das ciências — o estabelecimento das leis que regem os fenômenos — e que, para Comte, não pode ser confundida com o objetivo das artes (da tecnologia) de buscar aplicação prática imediata para o conhecimento.
É, pois, evidente que, depois de ter concebido, de maneira geral, o estudo da natureza como servindo de base racional à ação sobre ela, o espírito humano deva proceder a pesquisas teóricas, fazendo completamente abstração de toda consideração prática; porquanto nossos meios para descobrir a verdade são de tal modo fracos que, se não os concentrássemos exclusivamente neste fim, se, na procura desta verdade nos impuséssemos, ao mesmo tempo, a condição estranha de encontrar nela uma utilidade prática imediata, quase nos seriam sempre impossível chegar a ela. (Curso de filosofia positiva, 2 lição, III)
A partir desse suposto, Comte estabelece uma divisão entre ciências abstratas, que ele considera fundamentais, e as ciências concretas:
É preciso distinguir, em relação a todas as ordens de fenômenos, dois gêneros de ciências naturais: umas, abstratas, gerais, tendo por objeto a descoberta das leis que regem as diversas classes de fenômenos e que consideram todos os casos possíveis de conceber; outras, concretas, particulares, descritivas, designadas algumas vezes sob o no de ciências naturais propriamente ditas, e que consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes. As primeiras são, pois, fundamentais, sendo a elas que neste curso nossos estudos se limitarão. As outras, seja qual for sua importância, são de fato apenas secundários e não deve, e, por conseguinte, fazer parte dum trabalho cuja extensão extrema nos obriga a reduzir ao mínimo seu desenvolvimento possível. (Curso de filosofia positiva, 2 lição. IV)
Para as ciências fundamentais, e segundo uma ordem que é da própria natureza, Comte estabelece uma classificação que obedece ao grau de simplicidade e generalidade do objeto a que cada ciência fundamental se refere. Assim, sua classificação se inicia com as ciências que se ocupam dos fenômenos mais simples e mais distantes dos homens e que são, também, os mais gerais. Os fenômenos mais simples e mais gerais influenciam os mais particulares e mais complexos e, por isto, o conhecimento destes supõe o conhecimento necessário dos primeiros. Essa ordenação se constitui, para Comte, numa hierarquia rígida e que tem uma só direção, não havendo a possibilidade de que os fenômenos mais particulares, como, por exemplo, os fenômenos químicos, exerçam qualquer influência sobre fenômenos mais gerais, como, por exemplo, os fenômenos físicos.
Num primeiro momento, Comte hierarquiza cinco ciências fundamentais, com o intuito de esclarecer e aplicar seus critérios de classificação:
Como resultado dessa discussão, a filosofia positiva se encontra, pois, natural dividida em cinco ciências fundamentais, cuja sucessão é determinada pela subordinação necessária e invariável, fundada, independentemente de toda opinião hipotética, na simples comparação aprofundada dos fenômenos correspondentes: a astronomia, a física, a química, a filosofia e, enfim, a física social. A primeira considera os fenômenos mais gerais, mais simples, mais abstratos e, mais afastados da humanidade, e que influenciam todos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao contrário, os mais particulares, mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes para o homem; dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles influência alguma. Entre esses extremos, os graus de especialidade, de complicação e de personalidade dos fenômenos vão gradualmente aumentando, assim como sua dependência sucessiva. Tal é a íntima relação geral que a verdadeira observação filosófica, convenientemente empregada, ao contrário de vãs distinções arbitrárias, nos conduz a estabelecer entre as diversas ciências fundamentais. Este deve ser, portanto, o plano deste curso. (Curso de filosofia positiva, 2 lição, X)
A essas cinco ciências, acrescenta, então, uma sexta, que vem a ser a base para todas as outras ciências fundamentais.
É, de resto, evidente que, colocando a ciência matemática no topo da filosofia positiva, apenas estamos estendendo ainda mais a aplicação desse princípio de classificação, fundado na dependência sucessiva das ciências, resultante do grau de abstração de seus fenômenos respectivos. (..). Vê-se que os fenômenos geométricos e mecânicos são, entre todos, os mais gerais, os mais simples, os mais abstratos, os mais irredutíveis e os mais independentes de todos os outros, de que constituem ao contrário, a base. (.). Como resultado definitivo temos a matemática, a astronomia, a física, a química, a fisiologia, e a física social; tal é a fórmula enciclopédica que, dentre o grande número de classificações que comportam as seis ciências fundamentais, é a única logicamente conforme à hierarquia natural e invariável dos fenômenos. Não preciso lembrar a importância desse resultado, com que o leitor deve familiarizar-se para dele fazer, em toda a extensão deste curso, uma aplicação contínua. (Curso de filosofia positiva, 2 lição, XII)
Uma última característica significativa da proposta de Comte para a ciência é sua defesa de que todas as ciências devem se utilizar de um método único.
A unidade do método não significa que Comte defenda que todas as ciências devam se submeter aos mesmos procedimentos de investigação; ao contrário, procedimentos específicos são vistos como adaptados estreitamente aos objetos a que se referem, assim, por exemplo, a química deve utilizar da experimentação, enquanto a biologia deve utilizar da comparação e classificação. Essa unidade se refere, para Comte, à aplicação da filosofia positiva a todos os ramos do conhecimento, e, nesse sentido, pode-se entender como unidade do método a aplicação de procedimentos que levem à descoberta e descrição das leis que regem os fenômenos, a partir dos fatos e do raciocínio que permitem relacioná-los segundo essas leis, a fim de alcançar um conhecimento positivo que, como já foi dito, deve ser: real, útil, certo, preciso, que busca organizar e não destruir e que é relativo.
A única unidade indispensável é a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e já se encontra, na maior parte, estabelecida. Quanto à doutrina, não é necessário ser una, basta que seja homogênea. E, pois, sob o duplo ponto de vista da unidade dos métodos e da homogeneidade das dou trinas que consideraremos, neste curso, as diferentes classes de teorias positivas. Tendendo a diminuir o mais possível, o número das leis gerais necessárias para a explicação positiva dos fenômenos naturais, o que é, com efeito, a meta filosófica da ciência, consideraremos, entretanto, como temerário aspirar um dia, ainda que para um futuro muito afastado, a reduzi-las rigorosamente a uma só. (Curso de filosofia positiva, 1 lição, X)
A garantia de uma unidade do método a todas as ciências está associada ao que Comte talvez considere seu grande empreendimento: a criação de uma física social, ou uma sociologia, ou seja, a criação de uma ciência que se ocuparia da explicação da sociedade, possível pela aplicação do mesmo método já empregado nas outras ciências.
Eis a grande, mas, evidentemente, única lacuna que se trata de preencher para constituir a filosofia positiva. Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal seja animal resta-lhe, para terminar o sistema das ciências de observação, fundar a física social. Tal é hoje em várias direções capitais, a maior e mais urgente necessidade de nossa inteligência. Tal é, ouso dizei; o primeiro objetivo deste curso, sua meta especial. (Curso de filosofia positiva, l lição, VI)
Essa meta que Comte se coloca, a criação de uma nova ciência — a da sociedade —, implica uma visão de sociedade e um conjunto de propostas para ela.
Assim como ocorre com as outras ciências que se ocupam de fatos que são regidos por leis naturais e imutáveis, também a sociedade é vista, por Comte, como governada por leis que são imutáveis em si mesmas e que são independentes da vontade dos indivíduos ou do coletivo.
Essas leis, que são da mesma natureza das que governam a física ou a biologia, são, no entanto, leis próprias e particulares aos fenômenos sociais. Estes são vistos como fenômenos mais complexos, como fenômenos regidos por suas próprias leis que não se constituem em mera extensão de outras, como da fisiologia, por exemplo. A fisiologia, que estuda os indivíduos, não substitui o estudo da sociedade, embora fundamente esse estudo.
Em todos os fenômenos sociais observa-se, primeiramente, a influência das leis fisiológicas do indivíduo e, ademais, alguma coisa de particular que modifica seus efeitos e que provém da ação dos indivíduos uns sobre os outros, algo que se complica particularmente na espécie humana por causa da ação de cada geração sobre aquele que lhe segue. É pois evidente que, para estudar convenientemente os fenômenos sociais, é preciso partir de início do conheci mento aprofundado das leis relativas à vida individual. Por outro lado, essa subordinação necessária dos dois estudos não prescrevei de modo algum, como certos fisiologistas de primeira ordem foram levados a crer a necessidade de ver na física social simples apêndice da fisiologia. A despeito de os fenômenos serem por certo homogêneos não são idênticos e a separação das duas ciências é duma importância verdadeiramente fundamental. Pois seria impossível tratar o estudo coletivo da espécie como pura dedução do estudo do indivíduo, porquanto as condições sociais, que modificam a ação das leis fisiológicas, constituem precisamente a consideração mais essencial. Assim, a física social deve fundar-se num corpo de observações diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com a fisiologia propriamente dita. (Curso de filosofia positiva, 2 lição, IX)
Comte faz, também, uma distinção entre o indivíduo e o coletivo. Caracteriza o homem como ser inteligente e dotado de sociabilidade (o que o diferencia dos animais) e reivindica para o coletivo, para o grupo social, uma superioridade perante o indivíduo. E dessa concepção que decorre sua noção de que os homens, enquanto indivíduos numa sociedade, existem como substitutos efêmeros de outros indivíduos e que, como tal, têm importância, apenas, como perpetuadores da espécie. E esse caráter, o de um grupo constantemente modificado pela substituição de indivíduos particulares, mas que se perpetua e que permanece essencialmente o mesmo (apesar dos indivíduos particulares) por garantir a sobrevivência da espécie e por submeter-se às mesmas leis naturais, que garante, de um lado, a superioridade do coletivo sobre o individual, de outro lado, a preocupação da sociologia com o grupo social, e de outro, ainda, a noção de que os objetivos a serem alcançados pela sociedade são os objetivos relevantes ao grupo e não ao endivido. Ademais, isto leva à noção de que, no verdadeiro espírito positivo, a felicidade individual é obtida pela felicidade do grupo.
O espírito positivo ao contrário, é diretamente social tanto quanto possível e sem nenhum esforço, precisamente por causa de sua realidade característica. Para ele o homem propriamente dito não existe existindo apenas a humanidade já que nosso desenvolvimento provém da sociedade a partir de qualquer perspectiva que se o considere. Se a idéia de sociedade parece ainda uma abstração de nossa inteligência, é sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, porquanto, a bem dizer, é à idéia de indivíduo que pertence tal caráter, ao menos em nossa espécie. O conjunto da nova filosofia sempre tenderá a salientar, tanto na vida ativa quanto na vida especulativa a ligação de cada um a todos sob uma multidão de aspectos diferentes, de maneira a tornar involuntariamente familiar o íntimo sentimento de solidariedade social convenientemente desdobrado para todos os tempos e todos os lugares. Não somente a ativa procura do bem público será, sem cessar, considerada como o modo mais próprio de assegurar comumente a felicidade privada graças a uma influência ao mesmo tempo mais direta e mais pura e, finalmente mais eficaz; o mais completo exercício possível das tendências gerais tornar-se-á a principal fonte da felicidade pessoal, ainda que não devesse trazer excepcionalmente outra recompensa além de uma inevitável satisfação interior. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, XV)
Para Comte, o desenvolvimento da humanidade, que passa pelos três estados (o teológico, o metafísico e o positivo), resume-se, essencialmente, no desenvolvimento do espírito, do conhecimento. Nesse desenvolvimento, as estruturas básicas da sociedade — a família, a propriedade, a religião, a linguagem, a relação do poder espiritual e do poder temporal (Bréhier, 1 977b, p. 267) — mantêm-se, fundamentalmente, inalteradas. Essas estruturas são consideradas definitivas e básicas em qualquer estágio do desenvolvimento social, só ocorrendo, na passagem de um momento a outro, aperfeiçoamentos em cada uma delas. Assim, mais uma vez, Comte subordina a dinâmica a uma estática, subordina o progresso à ordem; o progresso é um mero deslocamento, um mero aperfeiçoamento de estruturas que são perenes e imutáveis. A sociologia caracteriza-se, então, pela preocupação em descobrir que leis governam a sociedade e não pela preocupação com a sua transformação.
Não se pode primeiramente desconhecer a aptidão espontânea dessa filosofia a constituir diretamente a conciliação fundamental ainda procurada de tão vãs maneiras, entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso. Basta-lhe; para isso estender até os fenômenos sociais uma tendência plenamente conforme a sua natureza e que tornou agora muito familiar em todos os outros casos essenciais. Num assunto qualquer, o espírito positivo leva sempre a estabelecer exata harmonia elementar entre as idéias de existência e as idéias de movimento, donde resulta mais especialmente; no que respeita aos com pos vivos, a correlação permanente das idéias de organização com as idéias de vida e; em seguida, graças a uma última especialização peculiar ao organismo social a solidariedade continua das idéias de ordem com as idéias de progresso. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
Essas noções ajudam a esclarecer por que Comte é um defensor ferrenho do poder estabelecido e um crítico de toda e qualquer tentativa de mu dança de poder, seja nas suas estruturas, seja nos seus ocupantes.
Sob essas condições naturais, a escola positiva tende, de um lado, a consolidar todos os poderes atuais sejam quais forem seus possuidores de outro, a impor-lhes obrigações morais cada vez mais conformes às verdadeiras necessidades dos povos. (Discurso sobre o espírito positivo, 3 parte, XVI)
Para Comte, qualquer insubordinação ao poder corrompe uma ordem preestabelecida, além de levar à falsa noção de que o fato de existirem diferentes grupos sociais implicaria uma oposição insolúvel de interesses entre esses grupos. Qualquer proposta ou ação que dificulte ou impeça a aceitação da concepção de que os diferentes grupos sociais existentes são complementares e necessários uns aos outros (industriais e trabalhadores, por exemplo) e de que a harmonia entre eles é benéfica e indispensável à sociedade (cujo progresso depende da ordem) é vista como falsa e perigosa. Já que Comte supõe que a sociedade depende e necessita de ordem para progredir, supõe, como consequência, que depende também de instituições fortes e permanentes, depende da existência de diferentes grupos sociais e de uma coexistência pacífica e harmoniosa entre eles.
São essas concepções que dão origem a um programa social que não implica mudanças e transformações sociais, mas que implica, isso sim, criar condições para que esses elementos necessários à sociedade se mantenham. E desta forma que deve ser compreendido seu programa social, baseado em dois aspectos fundamentais: uma educação universal, que ensine e convença os homens (e especialmente os trabalhadores) da imutabilidade e inexorabilidade das leis naturais a que estão submetidos, e trabalho para todos, o que garante que cada indivíduo cumpra seu papel social. Nesse sentido, são condições que preenchem um dever e não condições que garantem um direito.
São essas concepções que originam, também, a noção de que o poder a que os trabalhadores podem e devem aspirar é o poder espiritual, que é defendido por Comte como o único que realmente importa e que supera todo poder material ou temporal.
Se o povo está agora e deve permanecer a partir desse momento indiferente à posse direta do poder político nunca pode renunciar à sua indispensável participação contínua no poder moral. Este é o único verdadeiramente acessível a todos, sem perigo algum para a ordem universal. Muito pelo contrário: traz-lhe grandes vantagens cotidianas, autorizando cada um, em nome duma comum doutrina fundamental, a chamar convenientemente as mais altas potências a seus diversos deveres essenciais. Na verdade; os preconceitos inerentes ao estado transitório ou revolucionário tiveram que encontrar também algum acesso em nossos proletários alimentando, com efeito, inoportunas ilusões sobre o alcance indefinido das medidas políticas propriamente ditas. Impedem de, apreciar quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende hoje muito mais das opiniões e dos costumes do que das próprias instituições, cuja verdadeira regeneração, atualmente impossível, exige; antes de tudo, uma reorganização espiritual. No entanto, podemos assegurar que a escola positiva terá muito maior facilidade em fazer penetrar este salutar ensino nos espíritos populares que em qualquer outra parte, seja porque a metafísica negativa aí não pode enraizar-se tanto, seja, sobretudo, por causa do impulso constante das necessidades sociais inerentes à sua situação necessária. Essas necessidades se reportam essencialmente a duas condições fundamentais, uma espiritual outra temporal de natureza profundamente conexa. Trata-se com efeito, de assegurar convenientemente a todos primeiro, uma educação normal depois o trabalho regular. Tal é, no findo, o verdadeiro programa social dos proletários. Não pode mais existir verdadeira popularidade a não ser para uma política que tenda necessariamente para esse duplo destino. (Discurso sobre o espírito positivo, V parte, XIX)
A perspectiva e as propostas de Comte para a sociedade são completamente coerentes com sua noção de que a transformação, a evolução, o desenvolvimento são, antes de tudo, desenvolvimento e transformação do espírito. São coerentes, portanto, com a concepção que defende que a luta pela transformação é a luta pela transformação e pelo desenvolvimento das idéias e da moral.
Atacando a desordem atual em sua verdadeira fonte, necessariamente mental constitui, tão profundamente quanto possível, a harmonia lógica, regenerando, de início, os métodos antes das doutrinas, por uma tripla conversão simultânea da natureza das questões dominantes da maneira de tratá-las e das condições prévias de sua elaboração. Demonstra, com efeito, de uma parte, que as principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas sobre tudo morais de sorte que sua solução possível depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que as instituições, o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento filosófico. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
Só quando a moral tiver completado sua evolução poder-se-á pensar na reforma das instituições. Assim, para Comte, as únicas mudanças e trans formações bem-vindas e necessárias são morais e só depois de completadas se poderia pensar em mudanças materiais.
A tendência correspondente dos homens de Estado a impedir hoje tanto quanto possível todo grande movimento político encontra-se aliás espontaneamente com as exigências fundamentais de uma situação que só comportará real mente instituições provisórias, enquanto uma verdadeira filosofia geral não vincular suficientemente as inteligências. Desconhecida pelos poderes atuais, essa resistência instintiva colabora para facilitar a verdadeira solução, ajudando a transformar uma estéril agitação política numa ativa progressão filosófica, de maneira a seguir enfim, a marcha prescrita pela natureza, adequada à reorganização final que deve primeiro ocorrer nas idéias para passar em seguida aos costumes e, finalmente, ás instituições. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, IX)
A partir daí não é difícil compreender por que Comte propõe, em vez de mudanças nas estruturas e instituições sociais, mudanças que resultariam em/de uma nova religião. Em vez de mudar a vida material, muda-se, desenvolve-se, trabalha-se a vida moral. Isto seria feito por meio de uma nova religião, a religião da humanidade que, se permite as reformas morais necessárias, mantém, de resto, a própria estrutura das religiões — cultos, igrejas, santos, preces, etc. — e não interfere nas estruturas da sociedade.
Se a religião da humanidade permite as reformas necessárias ao desenvolvimento do espírito positivo, ela deve ser perfeitamente conforme com os princípios do conhecimento científico positivo. Com admirável coerência, Comte consegue combinar ciência positiva e religião positiva, ao erigir em ente supremo da religião da humanidade, ao sustentar, como dogma de sua religião, os princípios e leis imutáveis da natureza que, se são descobertos pela investigação científica, são popularizados e propagados, na forma de dogma, por meio de sua religião.
A fé positiva expõe diretamente as leis efetivas dos diversos fenômenos observáveis, tanto interiores como exteriores; isto é, suas relações constantes de sucessão e de semelhança, as quais nos permitem prever uns por meio dos outros. Ela afasta, como radical incute inacessível e profundamente ociosa, toda pesquisa acerca das causas propriamente ditas, primeiras ou finais, de quais quer acontecimentos. Em suas concepções teóricas, ela explica sempre como e nunca porque. Quando, porém, indica os meios de dirigir nossa atividade ela faz, pelo contrário, prevalecer constantemente a consideração do fim, já que então, o efeito prático dimana com certeza de uma vontade inteligente.
(..)
O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, mia existência constatada de uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito contemplador. Leis físicas supõem, com efeito, leis lógicas, e reciprocamente. Se o nosso entendimento não seguisse espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a harmonia exterior. Sendo o inundo mais simples e mais poderoso que o homem, a regularidade deste seria ainda menos conciliável com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta, pois, nesta dupla harmonia entre o objeto e o sujeito. (Catecismo positivista, pp. 143-144)
Por suas concepções a respeito do conhecimento e da sociedade e por sua capacidade de unir em um sistema coerente suas noções, Comte é visto como o grande representante de uma burguesia que, na segunda metade do século XIX, já havia perdido seu caráter libertário e progressista e havia, ao se entrincheirar no poder, assumido um caráter conservador. As estruturas econômicas, sociais e políticas, estabelecidas por essa burguesia e que lhe permitiam um contínuo acúmulo de capital, para serem perpetuadas e desenvolvidas, precisavam ser acrescidas de um ideário, de um sistema explicativo que afastasse as ameaças contidas nas lutas sociais e políticas emergentes e nas propostas de transformação que o próprio capitalismo gerara, Comte cumpriu esse papel com maestria.





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