domingo, 26 de agosto de 2018

A dúvida como recurso e a geometria como modelo:René Descartes.


                                     
       E, notando que esta verdade:  eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava.   
                                                                          Descartes
     Século XVI: época em que as antigas crenças e atitudes dominantes na Idade Média encontra-se abaladas, incitando a construção de um corpo de conhecimentos que soluciona a insatisfação frente as concepções geradas no período precedente
. Nessa perspectiva, o homem desse século parte em busca de novas descobertas e revive conhecimento da filosofia grega e oriental.  Toda essa atividade acaba por gerar, por um lado, novos conhecimentos acerca do mundo e, por outro, a incerteza em virtude da destruição da antiga destruição da unidade política, religiosa, das certezas da fé e do conhecimento. De acordo com Koyré ... O homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada é seguro. E onde tudo é possível, havendo, pois, um campo fértil para o desenvolvimento do ceticismo em relação à possibilidade do conhecimento cujo representante principal é Montaigne. Ainda segundo Koyré, é nesse contexto que surgem três saídas para busca de certezas: a fé, a experiência e a razão, posições defendidas, respectivamente, por Charron, Bacon e Descartes.
     René Descartes, filho de conselheiro do rei no parlamento da Bretanha, nasce em 1596 em La Haye, na França. Educado em um colégio Jesuíta, em 1618 ingressar na vida militar, servindo sob o comando de Maurício de Nassau; deixa a carreira militar em 1620.  Parte para Estocolmo em 1649 a convite da rainha Cristina da Suécia, que apreciava tem em sua presença sábios, escritores e artistas, morre, poucos meses após sua chegada, a 11 de fevereiro de 1650.
       Diferentemente do ceticismo identificado na época, Descartes acredita na possibilidade de conhecer e de chegar a verdades. Isso só é possível pela recuperação da razão: por meio de recursos metodológicos, propõe a utilização adequada da razão, de forma a obter ideias claras e distintas verdades indubitáveis, ponto de partida para alcançar novas verdades também indubitáveis. Á crença na razão, Descartes chega por meio de um processo em que, usando a dúvida como procedimento metódico, estende-a a tudo o que o cerca.
        O caminho que Descartes percorre para chegar as primeiras verdades evidentes, base de o seu sistema, é o que se segue: ao duvidar de tudo, chegar a certeza de que é um ser pensante, de que Deus existe, de que existem o seu próprio corpo e os corpos dos quais tem Sensações. Partindo da regra de que não se deve ter por certo nada que não seja claro e distinto, Descartes passa a duvidar da existência de todas as coisas, particularmente do que é proveniente dos sentidos. Essa dúvida só não pode atingir o próprio pensamento, cuja existência fica evidente pelo fato de que a dúvida ocorre.  Penso, logo existo: Descartes chega aqui a conclusão de que é um ser pensante e, portanto, existe.
         Passando a refletir sobre a dúvida, percebe-a com uma imperfeição se comparada ao conhecimento. Busca, então, a origem da ideia de perfeição nele presente, superior a ele próprio, ser imperfeito, e conclui que deve advir de algo perfeito, existente fora dele: Deus.
        Para Descartes ... É impossível que a ideia de Deus que em nós existe não tenha o próprio Deus por causa meditações, resumo. É da existência de Deus que provém a força das ideias claras e distintas. Deus esse que, sendo bom e perfeito, não permitiria que o homem se enganasse acerca dessas ideias. Se temos ideias das coisas exteriores e de que nos chegam por meio dos sentidos é porque tanto nosso corpo quanto essas coisas existem, tendo sido criados por Deus.Apoiadas na existência de Deus, as ideias claras e distintas passam a ser o critério do conhecimento: justificam não só a possibilidade de conhecer como também se constituem em ponto de partida para busca de novas certezas.Assim, a primeira verdade indubitável a qual chega Descartes, e da qual deriva outras, é a da existência do pensamento humano. Daí decorre um segundo princípio, o da existência de Deus, obtido a partir da análise de que o homem, ser imperfeito, consegue ter a ideia da perfeição.
          Na existência de Deus, Descartes fundamenta a possibilidade do conhecimento verdadeiro, ao qual se chegaria por meio da razão. A conclusão da existência de Deus não poderia apoiar-se em provas cosmológicas, já que estas deveriam ter por base a existência do próprio mundo, certeza que não considerava ser possível aceitar ainda. Portanto, a aceitação da existência de Deus é derivada da primeira verdade clara e distinta a qual chegou:  Eu penso, logo existo.
         A noção da existência de Deus faz parte da metafísica, conhecimento que deveria servir de suporte a todas as demais ciências que constituíam   o que Descartes denominava a verdadeira filosofia. Para evidenciar como imaginava a constituição da filosofia que daria ao homem o conhecimento de todas as coisas necessárias à vida, Descartes usa a imagem de uma árvore, identificando a metafísica com as raízes, a física como o troco, e a mecânica, a medicina e a moral com os galhos.  Da instauração dessa filosofia e do desenvolvimento dessas áreas de conhecimento resultariam, para o homem, certezas acerca de como se conduzir na vida, como conservar a saúde e como proceder para desenvolver novas técnicas.
          A ênfase que dá a razão não significa a opção por um conhecimento contemplativo, mas sim por único para buscar verdades que fossem principalmente úteis ao homem, possibilitando o controle sobre o mundo. É com esse objetivo que escreve suas obras e publica as conclusões, acerca do mundo físico e do funcionamento do corpo humano, obtidas a partir de seu método.
         O trecho a seguir, retirado do Discurso do método, mostra que a noção do conhecimento, como algo que possibilita o controle da natureza, está presente na obra de Descartes. Pois ela  noções gerais relativas a física  me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito uteis  a vida, e que, em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água,  do ar, dos astros dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices , poderíamos emprega-los  da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza.  Discurso do método, 6. Se a dúvida foi o ponto de partida para que descartes chegasse a esses primeiros princípios do qual deriva sua filosofia, o modelo de raciocínio que utilizou para chegar até eles foi o da matemática, pelas certezas e evidências que possibilita.  Descartes preocupou-se em descobrir verdades da mesma forma que, na matemática, pode-se identificar uma incógnita a partir da descoberta de relações.
          As regras metodológicas de Descartes indicam o caminho que o indivíduo deve percorrer para chegar a verdades; nesse sentido, as regras constituem-se em exercício do processo de descoberta que, segundo Bréhier, ... consistiria, antes de tudo, em levar o espírito a posse de alguns esquemas, que permitiria saber, ante o problema novo, de quantas verdades e de que verdades depende sua solução.
          As regras metodológicas de Descartes evidenciam, por outro lado, a necessidade de ordenação, que também está presente no raciocínio matemático.  De acordo com Koyré    ...  É esta a essência do pensamento   matemático, desse pensamento para o qual razão mais não significa que proporção ou relação que, por si mesmas, estabelecem uma ordem, e por si mesma se desenvolvem em série. E são as leis deste pensamento que as regras do Discurso nos ensinam, pelo menos as três últimas.
          Descartes enuncia quatro preceitos metodológicos no Discurso do método:
           O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião pô-la em dúvida.
           O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolve-las. 
            O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento do mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. 
            Assim, a ênfase na dúvida e no modelo matemático de raciocínio reflete-se nas regras metodológicas por ele propostas, meio pelo qual a razão chegaria a certezas claras e distintas, evitando os erros; em outras palavras, o método é o " mecanismo" que assegura o emprego adequado da razão nas suas duas operações intelectuais fundamentais: a intuição e a dedução. 
             A intuição consiste numa apreensão de evidências indubitáveis que não são extraídas da observação de dados por meio dos sentidos. Tais evidências são frutos do espírito humano, da razão, sobre as quais não paira qualquer dúvida.  A dedução consiste no processo por meio do qual se chega a conclusões, a partir de certas verdades-princípios, estando a elas ligadas intrinsecamente.  Assim, o principal aspecto da dedução é a ideia de que as verdades indubitáveis guardam entre si uma relação de necessidade, ou seja, uma decorre necessariamente da outra. 
             As ideias claras e distintas, aspecto central do pensamento cartesiano, encontra-se ligada à noção de inato. Para Descartes, o conjunto de ideias claras e distintas a que chegou a certeza da existência de Deus, da alma que pensa, da extensão corpórea e das coisas exteriores, acrescido das ideias matemáticas, existem no próprio indivíduo. O inatismo das ideias matemáticas fica evidente no seguinte trecho: 
            ...  Quando percebemos pela primeira vez em nossa infância uma figura triangular traçada sobre o papel, tal figura não nos pode ensinar como era necessário conceber o triângulo geométrico, posto que não representava melhor do que o mal desenho representa uma imagem perfeita. Mas, na medida em que a ideia verdadeira do triângulo já estava em nós, e que nosso espírito podia concebê-la mais facilmente do que a figura menos simples ou mais composta de um triângulo pintado daí decorre que, tendo visto esta figura composta, não a tenhamos concebido ela própria, mas antes o verdadeiro triângulo ....  Assim, certamente, não poderíamos jamais conhecer o triângulo geométrico através daquele que vemos traçado sobre o papel, se nosso espírito não recebesse a sua ideia de outra parte.    
             A importância que Descartes atribuiu a matemática revela-se em dois aspectos de seu pensamento: um deles, como já se viu, é o fato de que adota o raciocínio matemático como modelo para chegar a novas verdades; o outro aspecto é o de que   Descartes vê o mundo de forma matematizada.  As noções Matemáticas estão presentes na concepção da matéria-  que para ele é extensão, isto é, tem comprimento, largura, espessura; ao explicar os fenômenos, Descartes não se detém, portanto, nas suas qualidades sensíveis, cor, odor, som..., mas procura buscar sua essência que, segundo sua concepção, é matemática. De acordo com Koyré, exclui da ciência, recorde-se, tudo que não era ideia clara, o que quer dizer, para ele, qualquer ideia abstrata da sensível, qualquer ideia com sua marca. Só é claro, quer dizer, inteiramente acessível ao espírito, aquilo que a inteligência concebe sem nenhum concurso da imaginação dos sentidos. O que, praticamente, quer dizer:  só é claro o que é matemático ou, pelo menos, matematizável.
            Ao dizer matemático, Descartes tem como referência a geometria, e isso fica claro não só em seu conceito de matéria-  que é vista como comprimento, largura e espessura -  como em sua concepção de movimento. Este é, para Descartes, exclusivamente geométrico; não envolvendo a noção de tempo, são consideradas apenas a trajetória, a direção e a posição. Sendo encarado como translação no espaço -  passagem dos corpos de um lugar a outro -,  o movimento é considerado como entrechoque de corpos, já que Descartes admite a divisão da matéria e não aceita o espaço vazio ou o vácuo.
               Não havendo espaço vazio no universo e sendo o movimento a passagem dos corpos de um lugar a outro, a medida que um corpo se choca com outro, passa parte de seu movimento a este segundo. Consequentemente, a quantidade de movimento existente no universo, como um todo, é fixa, é sempre a mesma, já que, quando um corpo perde certa quantidade de movimento, esta é transferida, em igual proporção, aquele com o qual se choca. Ao explicar os fenômenos pelas noções de extensão em movimento, e este como entrechoques de corpos, Descartes apresenta uma visão mecânica de mundo. 
             De acordo com Koyré, a noção aristotélica de mundo - um universo finalista, hierarquizado, em que cada coisa tem sua função e seu lugar e onde a terra é o centro -  é destruída por Descartes, que conhecer o lugar ...  Extensão sem limites e sem fim ou matéria sem fim nem limite: para Descartes, é estritamente a mesma coisa.  E movimentos em tom nem som, movimentos sem finalidade nem fim. Deixa de haver lugares próprios para as coisas: todos os lugares com efeito equivalem   perfeitamente; todas as coisas, de resto, se equivalem igualmente. São todas apenas matéria e movimento. E a terra já não está no centro do mundo. Não há centro. Não há mundo. O universo não está ordenado para o homem: não está sequer ordenado.  Não existe a escala humana, existe a escala do espírito. É o mundo verdadeiro, não o que os nossos sentidos infiéis e enganadores nos mostram: é aquele que a razão pura e clara que não se pode enganar reencontra em si mesma.  
               A explicação mecânica do mundo vai ser identificada, no pensamento de Descartes, não só em relação ao mundo físico, como em relação a sentimentos do próprio homem. Por exemplo, na sua obra As paixões da alma, Descartes descreve, o movimento do sangue e dos espíritos do amor.   Essas observações, e muitas outras que seria demasiado longo relacionar, deram-me motivo para julgar que, quando o entendimento se representa qualquer objeto de amor, a impressão que tal pensamento efetua no cérebro conduz os espíritos animais, pelos nervos do sexto par, aos músculos situados em torno  dos intestinos e do estômago, da forma requerida ao levar o suco dos alimentos, que se converteu em sangue novo, a passar prontamente ao coração sem se deter no fígado, e, sendo aí impedido com mais força  do que  o é em outras partes do corpo, a entrar no coração com maior abundância e  excitar nele um calor maior por mais grosso do que aquele que já foi rarefeito muitas vezes ao passar e repassar pelo coração; o que o faz enviar também espíritos ao cérebro cujas partes são mais grossas e mais agitadas que de ordinário; e esses espíritos, fortalece a impressão que o primeiro pensamento do objeto amável nele ocasionou, obrigam a alma a deter se nesse pensamento; e é nisso que consiste a paixão do amor.    
              O mecanismo de Descartes só não se estende ao pensamento, e a explicação disso pode ser encontrada na distinção que faz entre a alma e o corpo humanos. 
             E, embora talvez  ou, antes, certamente, como direi logo mais  eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante  e inextensa, e que de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele. Meditações sexta.  
            Como se pode observar, ao distinguir corpo e espírito, Descartes atribuir um valor diferente para cada um deles. Ao caracteriza-los, aponta que o corpo o humano se identifica com os demais corpos do universo: é extenso, movimenta-se e pode ser explicado mecanicamente. Já a alma ou espírito é a essência do ser humano e, diferentemente dos outros corpos, é inextensa e indivisível. Ao descrever as funções de cada um desses elementos corpo e alma, Descartes afirma que certas experiências humanas se dão devido a união deles; é o caso, por exemplo, das sensações luz, som, cheiro, gosto..., das emoções cólera, alegria, amor...  e dos apetites  comer, beber.   Assim, é pela participação do corpo nas emoções humanas embora denomine as paixões da alma, que Descartes as descreve de forma mecânica, como se pode observar no exemplo apresentado envolvendo sua explicação do amor.  
               Á alma cabe pensar, o que envolve entendimento responsável pelo conhecimento e vontade a qual estão ligados o desejar, o negar, o duvidar.  É a alma que cabe, então, a principal função na produção de conhecimento: desvendar o que as coisas são. A isto se chegará, segundo Descartes, por meio da razão, único elemento que, pelo método cartesiano, é capaz de chegar a leis ou princípios gerais Acerca das coisas. Dos princípios gerais pode-se, então, deduzir efeitos ou decorrências, que se constituem em novos conhecimentos, ou novas verdades claras e evidentes. Segundo Descartes, só pela razão se poderia chegar a essas verdades porque os principais atributos da matéria a extensão e o movimento não podem ser percebidos pelos sentidos, ao contrário de propriedades que, para serem identificadas, precisam de sua participação, como a cor, o som, etc.  Assim, segundo Koyré. Descartes, ao contrário de Galileu, não se pergunta sobre como a natureza é ou se comporta, mas sim sobre qual o curso que a natureza deve seguir. Isso revela sua postura quanto a casualidade que é entendida como a conexão necessária entre fatos, em que um é a razão da ocorrência de outro. No entanto, em vez de observar a natureza e partir em busca das causas dos fenômenos com os dados de observação, assume que a elaboração de relações casuais se dará por deduções racionais em que, partindo-se de princípios gerais, se chegaria às suas decorrências ou efeitos.        
           A experiência observação e experimentação caberia, portanto, o papel de confiar as possíveis " suposições" deduzidas dos princípios gerais. Além disso, é também aos sentidos que cabe o conhecimento da existência das coisas, assim como o papel de desempate, ou seja, dentre todos os efeitos possíveis de se deduzir das leis gerais da natureza, é a experiência que auxilia na verificação de quais os que efetivamente se realizam. Para Descartes, portanto, a experiência acaba tendo de se subordinar a razão, na medida em que se restringe, praticamente, a uma função comprobatória. A superioridade do papel da razão em relação ou da experiência fica expressa em vários trechos de sua obra como no que se segue: " Pois é, ao que me parece, somente ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que compete conhecer a verdade essência e natureza dessas coisas.  
             Se, por meio da razão, chegarmos a verdadeira essência das coisas, se o método proposto propicia o uso adequado da razão no caminho da descoberta das ideias claras e distintas, e se Deus é bom e verídico, o que imprimiria a confiança a tais ideias, como explicaria Descartes o erro, muitas vezes cometido pelo homem?  
 É do uso inadequado do método ou mesmo do desprezo a seu uso que decorre o engano. Este advém do próprio homem, quando não usa de forma adequada as faculdades do espírito, expandindo a vontade além dos limites da compreensão. Sendo o entendimento finito e a vontade infinita, esta pode ultrapassar os limites do conhecimento claro na busca precipitada da verdade, acabando por fazer com que se assuma, como verdadeiras, noções ainda confusas. Segundo Beyssade, a partir dessas concepções nota-se que ...   A liberdade do homem intervém, aqui, com a possibilidade dum bom ou mau uso. Procurando a causa do erro, Descartes desenvolve a sua concepção de liberdade.  
               Quando se dúvida já se está exercendo a liberdade, que pode ou não recusar verdades claras e evidentes. Para que a vontade seja corretamente exercida deve, portanto, submete-se ao entendimento, caso contrário incorre-se em erro. O entendimento como guia fornece o critério que possibilita distinguir o verdadeiro do falso e assim fazer uma escolha. A vontade, existente na alma humana, exercendo sua liberdade, é que pode nos desvencilhar do erro e nos levar a atingir a verdade.  
                 Se em relação ao conhecimento do mundo. Descartes propõe que se deva a partir de certas, no que se refere a moral o mesmo não ocorre. Nesse campo, em que em dado momento as certezas podem não ser possíveis, Descartes coloca a necessidade de partir de alguns preconceitos, ainda que provisoriamente. Estes deveriam nortear ação do homem enquanto não se tivesse constituído a filosofia que esclarece tal ação. É considerado a necessidade de viver da melhor forma possível que Descartes defende que, no que diz respeito à prática da vida, não deve pairar a irresolução, propondo, assim, uma moral provisória. 
                Como guia ação moral humana, Descartes propõe três máximas. A primeira consiste em pautar-se nas opiniões mais moderadas dos mais sensatos entre os quais se vive, além de seguir as leis e costumes do país e adotar ...  A religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruindo desde da infância. Discurso do método, terceira parte.  Na segunda, indica que se deve agir com decisão, mesmo que diante de uma opinião duvidosa. Considerando o fato de que a vida exige muitas vezes urgência nas ações, Descartes recomenda que: ...  Quando não está em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis idem.  Em relação a essas opiniões prováveis, Descartes coloca que, uma vez tendo se decidido por elas, deve-se agir como se fossem verdadeiras. Na terceira, propõe que não se deve desejar nada que a razão mostre ser impossível obter, modificando antes ...  Os mesmos desejos do que a ordem do mundo idem.  
               É interessante perceber que, se em relação à produção de conhecimento Descartes apresenta uma posição de questionamento revelada na regra metodológica da dúvida, em relação a moral apresentada uma postura conformista. 
                Diz Descartes:  
                 De resto, peço-vos aqui que lembreis de que, no tocante as coisas que a vontade pode abranger, sempre estabeleci grande disposição entre a prática da vida e a contemplação da verdade. Pois, no que concerne a prática da vida, tanto faz que eu pense ser preciso seguir  apenas as coisas que conhecemos muito claramente, como, ao contrário, que eu sustente que nem sempre se deve contar com os mais verossímil, sendo preciso algumas vezes, entre muitas coisas completamente desconhecidas e incertas, escolher uma e se lhe apegar, e em seguida, crer nela não menos  firmemente, enquanto não virmos razões em contrário, do que se a tivéssemos escolhido por razões certas e muito evidentes, como já expliquei no Discurso do método. Mas, onde se trata tão-somente da contemplação da verdade, quem jamais negou que é preciso suspender o julgamento em relação as coisas obscuras e que não sejam assaz distintamente conhecidas?    
                  Num plano semelhante encontra-se as verdades da fé, que, como as máximas mortais, são separadas das opiniões submetidas a dúvida. Em ambos os campos, no entanto, não se elimina o papel da razão: na moral, a razão justifica agir diante de uma possível incerteza, na religião é a razão que nos convence de que as verdades da fé nos sãos revelados por Deus.


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