E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão
certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes
de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro
princípio da filosofia que procurava.
Descartes
Século XVI: época em que as antigas
crenças e atitudes dominantes na Idade Média encontra-se abaladas, incitando a
construção de um corpo de conhecimentos que soluciona a insatisfação frente as
concepções geradas no período precedente
. Nessa perspectiva, o homem desse
século parte em busca de novas descobertas e revive conhecimento da filosofia
grega e oriental. Toda essa atividade
acaba por gerar, por um lado, novos conhecimentos acerca do mundo e, por outro,
a incerteza em virtude da destruição da antiga destruição da unidade política,
religiosa, das certezas da fé e do conhecimento. De acordo com Koyré ... O
homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada é
seguro. E onde tudo é possível, havendo, pois, um campo fértil para o
desenvolvimento do ceticismo em relação à possibilidade do conhecimento cujo
representante principal é Montaigne. Ainda segundo Koyré, é nesse contexto que
surgem três saídas para busca de certezas: a fé, a experiência e a razão,
posições defendidas, respectivamente, por Charron, Bacon e Descartes.
René Descartes, filho de conselheiro do
rei no parlamento da Bretanha, nasce em 1596 em La Haye, na França. Educado em
um colégio Jesuíta, em 1618 ingressar na vida militar, servindo sob o comando
de Maurício de Nassau; deixa a carreira militar em 1620. Parte para Estocolmo em 1649 a convite da
rainha Cristina da Suécia, que apreciava tem em sua presença sábios, escritores
e artistas, morre, poucos meses após sua chegada, a 11 de fevereiro de 1650.
Diferentemente do ceticismo identificado
na época, Descartes acredita na possibilidade de conhecer e de chegar a
verdades. Isso só é possível pela recuperação da razão: por meio de recursos
metodológicos, propõe a utilização adequada da razão, de forma a obter ideias
claras e distintas verdades indubitáveis, ponto de partida para alcançar novas
verdades também indubitáveis. Á crença na razão, Descartes chega por meio de um
processo em que, usando a dúvida como procedimento metódico, estende-a a tudo o
que o cerca.
O caminho que Descartes percorre para
chegar as primeiras verdades evidentes, base de o seu sistema, é o que se
segue: ao duvidar de tudo, chegar a certeza de que é um ser pensante, de que
Deus existe, de que existem o seu próprio corpo e os corpos dos quais tem
Sensações. Partindo da regra de que não se deve
ter por certo nada que não seja claro e distinto, Descartes passa a duvidar da
existência de todas as coisas, particularmente do que é proveniente dos
sentidos. Essa dúvida só não pode atingir o próprio pensamento, cuja existência
fica evidente pelo fato de que a dúvida ocorre.
Penso, logo existo: Descartes chega aqui a conclusão de que é um ser
pensante e, portanto, existe.
Passando a refletir sobre a dúvida,
percebe-a com uma imperfeição se comparada ao conhecimento. Busca, então, a
origem da ideia de perfeição nele presente, superior a ele próprio, ser
imperfeito, e conclui que deve advir de algo perfeito, existente fora dele:
Deus.
Para Descartes ... É impossível que a
ideia de Deus que em nós existe não tenha o próprio Deus por causa meditações,
resumo. É da existência de Deus que provém a
força das ideias claras e distintas. Deus esse que, sendo bom e perfeito, não
permitiria que o homem se enganasse acerca dessas ideias. Se temos ideias das
coisas exteriores e de que nos chegam por meio dos sentidos é porque tanto
nosso corpo quanto essas coisas existem, tendo sido criados por Deus.Apoiadas na existência de Deus, as
ideias claras e distintas passam a ser o critério do conhecimento: justificam
não só a possibilidade de conhecer como também se constituem em ponto de
partida para busca de novas certezas.Assim, a primeira verdade
indubitável a qual chega Descartes, e da qual deriva outras, é a da existência
do pensamento humano. Daí decorre um segundo princípio, o da existência de
Deus, obtido a partir da análise de que o homem, ser imperfeito, consegue ter a
ideia da perfeição.
Na existência de Deus, Descartes
fundamenta a possibilidade do conhecimento verdadeiro, ao qual se chegaria por
meio da razão. A conclusão da existência de Deus não poderia apoiar-se em
provas cosmológicas, já que estas deveriam ter por base a existência do próprio
mundo, certeza que não considerava ser possível aceitar ainda. Portanto, a
aceitação da existência de Deus é derivada da primeira verdade clara e distinta
a qual chegou: Eu penso, logo existo.
A noção da existência de Deus faz
parte da metafísica, conhecimento que deveria servir de suporte a todas as
demais ciências que constituíam o que
Descartes denominava a verdadeira filosofia. Para evidenciar como imaginava a
constituição da filosofia que daria ao homem o conhecimento de todas as coisas
necessárias à vida, Descartes usa a imagem de uma árvore, identificando a
metafísica com as raízes, a física como o troco, e a mecânica, a medicina e a
moral com os galhos. Da instauração
dessa filosofia e do desenvolvimento dessas áreas de conhecimento resultariam,
para o homem, certezas acerca de como se conduzir na vida, como conservar a
saúde e como proceder para desenvolver novas técnicas.
A ênfase que dá a razão não significa
a opção por um conhecimento contemplativo, mas sim por único para buscar
verdades que fossem principalmente úteis ao homem, possibilitando o controle
sobre o mundo. É com esse objetivo que escreve suas obras e publica as
conclusões, acerca do mundo físico e do funcionamento do corpo humano, obtidas
a partir de seu método.
O trecho a seguir, retirado do
Discurso do método, mostra que a noção do conhecimento, como algo que
possibilita o controle da natureza, está presente na obra de Descartes. Pois ela noções gerais relativas a física me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos
que sejam muito uteis a vida, e que, em
vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar
uma prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros dos céus e de todos os
outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos
misteres de nossos artífices , poderíamos emprega-los da mesma maneira em todos os usos para os
quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da
natureza. Discurso do método, 6. Se a
dúvida foi o ponto de partida para que descartes chegasse a esses primeiros
princípios do qual deriva sua filosofia, o modelo de raciocínio que utilizou
para chegar até eles foi o da matemática, pelas certezas e evidências que
possibilita. Descartes preocupou-se em
descobrir verdades da mesma forma que, na matemática, pode-se identificar uma
incógnita a partir da descoberta de relações.
As regras metodológicas de Descartes
indicam o caminho que o indivíduo deve percorrer para chegar a verdades; nesse
sentido, as regras constituem-se em exercício do processo de descoberta que,
segundo Bréhier, ... consistiria, antes de tudo, em levar o espírito a posse de
alguns esquemas, que permitiria saber, ante o problema novo, de quantas
verdades e de que verdades depende sua solução.
As regras metodológicas de Descartes
evidenciam, por outro lado, a necessidade de ordenação, que também está
presente no raciocínio matemático. De
acordo com Koyré ... É esta a essência do pensamento matemático, desse pensamento para o qual razão
mais não significa que proporção ou relação que, por si mesmas, estabelecem uma
ordem, e por si mesma se desenvolvem em série. E são as leis deste pensamento
que as regras do Discurso nos ensinam, pelo menos as três últimas.
Descartes enuncia quatro preceitos metodológicos
no Discurso do método:
O primeiro era o de jamais acolher
alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto
é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em
meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu
espírito, que não tivesse nenhuma ocasião pô-la em dúvida.
O segundo, o de dividir cada uma das
dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas
necessárias fossem para melhor resolve-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem
meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento do
mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações
tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
Assim, a ênfase na dúvida e no
modelo matemático de raciocínio reflete-se nas regras metodológicas por ele
propostas, meio pelo qual a razão chegaria a certezas claras e distintas,
evitando os erros; em outras palavras, o método é o " mecanismo" que
assegura o emprego adequado da razão nas suas duas operações intelectuais fundamentais:
a intuição e a dedução.
A intuição consiste numa apreensão
de evidências indubitáveis que não são extraídas da observação de dados por
meio dos sentidos. Tais evidências são frutos do espírito humano, da razão,
sobre as quais não paira qualquer dúvida. A dedução consiste no processo por meio do
qual se chega a conclusões, a partir de certas verdades-princípios, estando a
elas ligadas intrinsecamente. Assim, o
principal aspecto da dedução é a ideia de que as verdades indubitáveis guardam
entre si uma relação de necessidade, ou seja, uma decorre necessariamente da
outra.
As ideias claras e distintas,
aspecto central do pensamento cartesiano, encontra-se ligada à noção de inato.
Para Descartes, o conjunto de ideias claras e distintas a que chegou a certeza
da existência de Deus, da alma que pensa, da extensão corpórea e das coisas
exteriores, acrescido das ideias matemáticas, existem no próprio indivíduo. O
inatismo das ideias matemáticas fica evidente no seguinte trecho:
...
Quando percebemos pela primeira vez em nossa infância uma figura
triangular traçada sobre o papel, tal figura não nos pode ensinar como era
necessário conceber o triângulo geométrico, posto que não representava melhor
do que o mal desenho representa uma imagem perfeita. Mas, na medida em que a
ideia verdadeira do triângulo já estava em nós, e que nosso espírito podia
concebê-la mais facilmente do que a figura menos simples ou mais composta de um
triângulo pintado daí decorre que, tendo visto esta figura composta, não a
tenhamos concebido ela própria, mas antes o verdadeiro triângulo .... Assim, certamente, não poderíamos jamais
conhecer o triângulo geométrico através daquele que vemos traçado sobre o
papel, se nosso espírito não recebesse a sua ideia de outra parte.
A importância que Descartes
atribuiu a matemática revela-se em dois aspectos de seu pensamento: um deles,
como já se viu, é o fato de que adota o raciocínio matemático como modelo para
chegar a novas verdades; o outro aspecto é o de que Descartes vê o mundo de forma
matematizada. As noções Matemáticas
estão presentes na concepção da matéria-
que para ele é extensão, isto é, tem comprimento, largura, espessura; ao
explicar os fenômenos, Descartes não se detém, portanto, nas suas qualidades
sensíveis, cor, odor, som..., mas procura buscar sua essência que, segundo sua
concepção, é matemática. De acordo com Koyré, exclui da ciência, recorde-se,
tudo que não era ideia clara, o que quer dizer, para ele, qualquer ideia
abstrata da sensível, qualquer ideia com sua marca. Só é claro, quer dizer,
inteiramente acessível ao espírito, aquilo que a inteligência concebe sem
nenhum concurso da imaginação dos sentidos. O que, praticamente, quer dizer: só é claro o que é matemático ou, pelo menos,
matematizável.
Ao dizer matemático, Descartes tem
como referência a geometria, e isso fica claro não só em seu conceito de
matéria- que é vista como comprimento,
largura e espessura - como em sua
concepção de movimento. Este é, para Descartes, exclusivamente geométrico; não
envolvendo a noção de tempo, são consideradas apenas a trajetória, a direção e
a posição. Sendo encarado como translação no espaço - passagem dos corpos de um lugar a outro
-, o movimento é considerado como
entrechoque de corpos, já que Descartes admite a divisão da matéria e não
aceita o espaço vazio ou o vácuo.
Não havendo espaço vazio no
universo e sendo o movimento a passagem dos corpos de um lugar a outro, a
medida que um corpo se choca com outro, passa parte de seu movimento a este
segundo. Consequentemente, a quantidade de movimento existente no universo,
como um todo, é fixa, é sempre a mesma, já que, quando um corpo perde certa
quantidade de movimento, esta é transferida, em igual proporção, aquele com o
qual se choca. Ao explicar os fenômenos pelas noções de extensão em movimento,
e este como entrechoques de corpos, Descartes apresenta uma visão mecânica de
mundo.
De acordo com Koyré, a noção aristotélica de mundo
- um universo finalista, hierarquizado, em que cada coisa tem sua função e seu
lugar e onde a terra é o centro - é
destruída por Descartes, que conhecer o lugar ... Extensão sem limites e sem fim ou matéria sem
fim nem limite: para Descartes, é estritamente a mesma coisa. E movimentos em tom nem som, movimentos sem
finalidade nem fim. Deixa de haver lugares próprios para as coisas: todos os
lugares com efeito equivalem
perfeitamente; todas as coisas, de resto, se equivalem igualmente. São todas
apenas matéria e movimento. E a terra já não está no centro do mundo. Não há
centro. Não há mundo. O universo não está ordenado para o homem: não está
sequer ordenado. Não existe a escala
humana, existe a escala do espírito. É o mundo verdadeiro, não o que os nossos
sentidos infiéis e enganadores nos mostram: é aquele que a razão pura e clara
que não se pode enganar reencontra em si mesma.
A explicação mecânica do mundo
vai ser identificada, no pensamento de Descartes, não só em relação ao mundo
físico, como em relação a sentimentos do próprio homem. Por exemplo, na sua
obra As paixões da alma, Descartes descreve, o movimento do sangue e dos
espíritos do amor. Essas observações, e
muitas outras que seria demasiado longo relacionar, deram-me motivo para julgar
que, quando o entendimento se representa qualquer objeto de amor, a impressão
que tal pensamento efetua no cérebro conduz os espíritos animais, pelos nervos
do sexto par, aos músculos situados em torno
dos intestinos e do estômago, da forma requerida ao levar o suco dos
alimentos, que se converteu em sangue novo, a passar prontamente ao coração sem
se deter no fígado, e, sendo aí impedido com mais força do que
o é em outras partes do corpo, a entrar no coração com maior abundância
e excitar nele um calor maior por mais
grosso do que aquele que já foi rarefeito muitas vezes ao passar e repassar
pelo coração; o que o faz enviar também espíritos ao cérebro cujas partes são
mais grossas e mais agitadas que de ordinário; e esses espíritos, fortalece a
impressão que o primeiro pensamento do objeto amável nele ocasionou, obrigam a
alma a deter se nesse pensamento; e é nisso que consiste a paixão do amor.
O mecanismo de Descartes só não
se estende ao pensamento, e a explicação disso pode ser encontrada na distinção
que faz entre a alma e o corpo humanos.
E, embora talvez ou, antes, certamente, como direi logo mais eu tenha um corpo ao qual estou muito
estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho uma ideia clara e
distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que de outro, tenho uma ideia
distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa,
é certo que este eu, isto é minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e
verdadeiramente distinta do meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele.
Meditações sexta.
Como se pode observar, ao
distinguir corpo e espírito, Descartes atribuir um valor diferente para cada um
deles. Ao caracteriza-los, aponta que o corpo o humano se identifica com os
demais corpos do universo: é extenso, movimenta-se e pode ser explicado
mecanicamente. Já a alma ou espírito é a essência do ser humano e,
diferentemente dos outros corpos, é inextensa e indivisível. Ao descrever as
funções de cada um desses elementos corpo e alma, Descartes afirma que certas
experiências humanas se dão devido a união deles; é o caso, por exemplo, das
sensações luz, som, cheiro, gosto..., das emoções cólera, alegria, amor... e dos apetites comer, beber. Assim, é pela participação do corpo nas
emoções humanas embora denomine as paixões da alma, que Descartes as descreve
de forma mecânica, como se pode observar no exemplo apresentado envolvendo sua
explicação do amor.
Á alma cabe pensar, o que
envolve entendimento responsável pelo conhecimento e vontade a qual estão
ligados o desejar, o negar, o duvidar. É
a alma que cabe, então, a principal função na produção de conhecimento:
desvendar o que as coisas são. A isto se chegará, segundo Descartes, por meio
da razão, único elemento que, pelo método cartesiano, é capaz de chegar a leis
ou princípios gerais Acerca das coisas. Dos princípios gerais pode-se, então,
deduzir efeitos ou decorrências, que se constituem em novos conhecimentos, ou
novas verdades claras e evidentes. Segundo Descartes, só pela razão se poderia
chegar a essas verdades porque os principais atributos da matéria a extensão e
o movimento não podem ser percebidos pelos sentidos, ao contrário de
propriedades que, para serem identificadas, precisam de sua participação, como
a cor, o som, etc. Assim, segundo Koyré.
Descartes, ao contrário de Galileu, não se pergunta sobre como a natureza é ou
se comporta, mas sim sobre qual o curso que a natureza deve seguir. Isso revela
sua postura quanto a casualidade que é entendida como a conexão necessária
entre fatos, em que um é a razão da ocorrência de outro. No entanto, em vez de
observar a natureza e partir em busca das causas dos fenômenos com os dados de
observação, assume que a elaboração de relações casuais se dará por deduções
racionais em que, partindo-se de princípios gerais, se chegaria às suas
decorrências ou efeitos.
A experiência observação e experimentação
caberia, portanto, o papel de confiar as possíveis " suposições"
deduzidas dos princípios gerais. Além disso, é também aos sentidos que cabe o
conhecimento da existência das coisas, assim como o papel de desempate, ou
seja, dentre todos os efeitos possíveis de se deduzir das leis gerais da
natureza, é a experiência que auxilia na verificação de quais os que
efetivamente se realizam. Para Descartes, portanto, a experiência acaba tendo de
se subordinar a razão, na medida em que se restringe, praticamente, a uma
função comprobatória. A superioridade do papel da razão em relação ou da
experiência fica expressa em vários trechos de sua obra como no que se segue:
" Pois é, ao que me parece, somente ao espírito, e não ao composto de
espírito e corpo, que compete conhecer a verdade essência e natureza dessas
coisas.
Se, por meio da razão, chegarmos a
verdadeira essência das coisas, se o método proposto propicia o uso adequado da
razão no caminho da descoberta das ideias claras e distintas, e se Deus é bom e
verídico, o que imprimiria a confiança a tais ideias, como explicaria Descartes
o erro, muitas vezes cometido pelo homem?
É do uso inadequado do método ou mesmo do
desprezo a seu uso que decorre o engano. Este advém do próprio homem, quando
não usa de forma adequada as faculdades do espírito, expandindo a vontade além
dos limites da compreensão. Sendo o entendimento finito e a vontade infinita,
esta pode ultrapassar os limites do conhecimento claro na busca precipitada da
verdade, acabando por fazer com que se assuma, como verdadeiras, noções ainda
confusas. Segundo Beyssade, a partir dessas concepções nota-se que ... A liberdade do homem intervém, aqui, com a
possibilidade dum bom ou mau uso. Procurando a causa do erro, Descartes
desenvolve a sua concepção de liberdade.
Quando se dúvida já se está
exercendo a liberdade, que pode ou não recusar verdades claras e evidentes.
Para que a vontade seja corretamente exercida deve, portanto, submete-se ao
entendimento, caso contrário incorre-se em erro. O entendimento como guia
fornece o critério que possibilita distinguir o verdadeiro do falso e assim
fazer uma escolha. A vontade, existente na alma humana, exercendo sua
liberdade, é que pode nos desvencilhar do erro e nos levar a atingir a
verdade.
Se em relação ao conhecimento
do mundo. Descartes propõe que se deva a partir de certas, no que se refere a
moral o mesmo não ocorre. Nesse campo, em que em dado momento as certezas podem
não ser possíveis, Descartes coloca a necessidade de partir de alguns
preconceitos, ainda que provisoriamente. Estes deveriam nortear ação do homem
enquanto não se tivesse constituído a filosofia que esclarece tal ação. É
considerado a necessidade de viver da melhor forma possível que Descartes
defende que, no que diz respeito à prática da vida, não deve pairar a irresolução,
propondo, assim, uma moral provisória.
Como guia ação moral humana, Descartes
propõe três máximas. A primeira consiste em pautar-se nas opiniões mais
moderadas dos mais sensatos entre os quais se vive, além de seguir as leis e
costumes do país e adotar ... A religião
em que Deus me concedeu a graça de ser instruindo desde da infância. Discurso
do método, terceira parte. Na segunda,
indica que se deve agir com decisão, mesmo que diante de uma opinião duvidosa.
Considerando o fato de que a vida exige muitas vezes urgência nas ações,
Descartes recomenda que: ... Quando não
está em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as
mais prováveis idem. Em relação a essas
opiniões prováveis, Descartes coloca que, uma vez tendo se decidido por elas,
deve-se agir como se fossem verdadeiras. Na terceira, propõe que não se deve
desejar nada que a razão mostre ser impossível obter, modificando antes ... Os mesmos desejos do que a ordem do mundo
idem.
É interessante perceber que, se
em relação à produção de conhecimento Descartes apresenta uma posição de
questionamento revelada na regra metodológica da dúvida, em relação a moral
apresentada uma postura conformista.
Diz Descartes:
De resto, peço-vos aqui que
lembreis de que, no tocante as coisas que a vontade pode abranger, sempre
estabeleci grande disposição entre a prática da vida e a contemplação da
verdade. Pois, no que concerne a prática da vida, tanto faz que eu pense ser
preciso seguir apenas as coisas que
conhecemos muito claramente, como, ao contrário, que eu sustente que nem sempre
se deve contar com os mais verossímil, sendo preciso algumas vezes, entre
muitas coisas completamente desconhecidas e incertas, escolher uma e se lhe
apegar, e em seguida, crer nela não menos
firmemente, enquanto não virmos razões em contrário, do que se a
tivéssemos escolhido por razões certas e muito evidentes, como já expliquei no
Discurso do método. Mas, onde se trata tão-somente da contemplação da verdade,
quem jamais negou que é preciso suspender o julgamento em relação as coisas
obscuras e que não sejam assaz distintamente conhecidas?
Num plano semelhante
encontra-se as verdades da fé, que, como as máximas mortais, são separadas das
opiniões submetidas a dúvida. Em ambos os campos, no entanto, não se elimina o
papel da razão: na moral, a razão justifica agir diante de uma possível
incerteza, na religião é a razão que nos convence de que as verdades da fé nos
sãos revelados por Deus.
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