quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

OLHAR PARA A HISTÓRIA: CAMINHO PARA A COMPREENSÃO DA CIÊNCIA




INTRODUÇÃO
OLHAR PARA A HISTÓRIA: CAMINHO PARA A COMPREENSÃO DA CIÊNCIA HOJE

        O homem é um ser natural, isto é, ele é um ser que faz parte da natureza; não se pode conceber o conjunto da natureza sem nela inserir a espécie humana. Ao mesmo tempo em que se constitui em ser natural, o homem diferencia-se da natureza, que é, como o diz Marx: “o corpo inorgânico do homem”; para sobreviver ele precisa com ela relacionar-se já que dela provêm as condições que lhe permitem perpetuar-se enquanto espécie; não se pode, portanto, conceber o homem sem a natureza e nem a natureza sem o homem.
 
      Na busca das condições para sua sobrevivência, o ser humano – assim como outros animais – atua sobre a natureza já que, através dessa interação, satisfaz suas necessidades; no entanto, a relação homem-natureza diferencia-se da interação animal-natureza no que diz respeito à forma de atuação A atividade dos animais, em relação à natureza, é biologicamente determinada; a sobrevivência da espécie se dá através de sua adaptação ao meio. O animal limita-se à imediaticidade das situações, atuando de forma a permitir a sobrevivência de si próprio e a de sua prole; isto se repete, com mínimas alterações, em cada nova geração.Por mais sofisticadas que possam ser as atividades animais – por exemplo, a casa feita pelo joão-de-barro ou a organização de um formigueiro – elas ocorrem com pequenas modificações na espécie, já que a transmissão da “experiência” é feita quase exclusivamente pelo código genético; o mesmo se pode dizer em relação às modificações que provocam na natureza, por mais elaboradas que possam parecer. Assim, se a atuação do animal sobre a natureza permite a sobrevivência da espécie, isso se dá em função de características biológicas, o que estabelece os limites da possibilidade de modificações que a atuação do animal provoca seja na natureza, seja em si próprio. O homem também atua sobre a natureza em função de suas necessidades e o faz para sobreviver enquanto espécie. No entanto, diferentemente de outros animais, o homem não se limita à imediaticidade das situações com que se depara; ultrapassa limites, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e de sua prole), não se restringindo às necessidades que se revelam no aqui e agora. A ação humana não é apenas biologicamente determinada, mas se dá principalmente pela incorporação das experiências e conhecimentos produzidos e transmitidos de geração a geração; a transmissão dessas experiências e conhecimentos – através da educação e da cultura – permite que, no homem, a nova geração não volte ao ponto de partida da que a precedeu. A atuação do homem diferencia-se da do animal porque, ao alterar a natureza, através de sua ação, torna-a humanizada; em outras palavras, a natureza adquire a marca da atividade humana. Ao mesmo tempo, o homem altera a si próprio através dessa interação; o homem vai se construindo, vai se diferenciando cada vez mais das outras espécies animais. A interação homem-natureza é um processo permanente de mútua transformação: esse é o processo de produção da existência humana. É o processo de produção da existência humana porque o ser humano vai se modificando, alterando aquilo que é necessário à sua sobrevivência. Velhas necessidades adquirem características diferentes; até mesmo as necessidades consideradas básicas – por exemplo, a alimentação – refletem a mudança ocorrida no homem; os hábitos e necessidades alimentares são hoje muito diferentes do que foram em outros momentos. A alteração, no entanto, não se limita à transformação de velhas necessidades: o homem cria novas necessidades que passam a ser tão fundamentais quanto as chamadas necessidades básicas à sua sobrevivência.
       É o processo de produção da existência humana porque o homem não só cria artefatos, instrumentos, como também desenvolve ideias (conhecimentos, valores, crenças) e mecanismos para sua elaboração (desenvolvimento do raciocínio, planejamento...). A criação de instrumentos, a formulação de ideias e formas específicas de elaborá-los – características identificadas como eminentemente humanas – são fruto da interação homem-natureza. Por mais sofisticadas que possam parecer, as ideias são produtos de e exprimem as relações que o homem estabelece com a natureza na qual se insere.

É o processo da produção da existência humana porque cada nova interação reflete uma natureza modificada – pois nela incorporam-se criações antes inexistentes; reflete, também, um homem já modificado – pois suas necessidades, condições e caminhos para satisfazê-las são outros que foram sendo construídos pelo próprio homem. É nesse processo que o homem adquire consciência de que está transformando a natureza para adaptá-la a suas necessidades, característica que vai diferenciá-lo: a ação humana, ao contrário da de outros animais, é intencional e planejada; em outras palavras, o homem sabe que sabe. O processo de produção da existência humana é um processo social; o ser humano não vive isoladamente, ao contrário, depende de outros para sobreviver. Há interdependência dos seres humanos em todas as formas da atividade humana; quaisquer que sejam suas necessidades – da produção de bens à elaboração de conhecimentos, costumes, valores... – elas são criadas, atendidas e transformadas a partir da organização e do estabelecimento de relações entre os homens. Na base de todas as relações humanas, determinando e condicionando a vida, está o trabalho – uma atividade humana intencional que envolve formas de organização, objetivando a produção dos bens necessários à vida humana. Essa organização implica uma dada maneira de dividir o trabalho necessário à sociedade sendo determinada – e condicionando ao mesmo tempo, pelo nível técnico e pelos meios existentes para o trabalho, determinando relações entre os homens, inclusive no tocante à propriedade dos instrumentos e materiais utilizados e à apropriação do produto do trabalho. As relações de trabalho – a forma de dividi-lo, organizá-lo, ao lado do nível técnico dos instrumentos de trabalho, dos meios disponíveis para a produção de bens materiais – compõem a base econômica de uma dada sociedade. É essa base econômica que determina as formas políticas, jurídicas e o conjunto das ideias que existem em cada sociedade. É a transformação dessa base econômica, a partir das contradições que ela mesma engendra, que leva à transformação de toda a sociedade, implicando um novo modo de produção e uma nova forma de organização política e social. Por exemplo, nas sociedades tribais (comunais) o grupo social organiza-se por sexo e idade para produzir os bens necessários à sua sobrevivência. Às mulheres e crianças cabiam determinadas tarefas e aos homens, outras. Essa primeira divisão do trabalho, além de garantir a sobrevivência do grupo, gerou um conjunto de instrumentos, técnicas, valores, costumes, crenças, conhecimentos, organização familiar etc. A propriedade dos instrumentos de trabalho, bem como a propriedade do produto do trabalho (a caça, o peixe etc.) eram de toda a comunidade. A transmissão das técnicas, valores, conhecimentos etc. era feita, basicamente, através da comunicação oral e do contato pessoal, diferentemente do que ocorre atualmente. Já na Grécia Antiga, por volta de 800 a.C., o comércio fundado na exportação e importação agrícolas e artesanais, é a base da atividade econômica, e há um nível técnico de produção desenvolvido ao lado de uma organização política na forma de cidades-estados. Nessa sociedade, além da divisão do trabalho cidade-campo, ocorre uma divisão entre os produtores de bens e os donos da produção; os produtores não detêm a propriedade da terra, nem os instrumentos de trabalho e nem o próprio produto de seu trabalho; são, em sua maioria, eles mesmos, propriedade de outros homens. Nessa sociedade, as relações estabelecidas entre os homens são desiguais, onde alguns vivem do produto do trabalho de outros e onde a produção de conhecimento é desenvolvida por aqueles que não executam o trabalho manual.
Ao analisar, em cada momento histórico, os produtos da existência humana, as ideias – sendo um desses produtos – não são exceções. As ideias são a expressão das relações e atividades reais do homem, estabelecidas no processo de produção de sua existência. Elas são a representação daquilo que o homem faz, da sua maneira de viver, da forma como se relaciona com outros homens, do mundo que o circunda e das suas próprias necessidades. Marx e Engels afirmam: “A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real (...). Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”. Isso não significa que o homem crie suas representações mecanicamente: aquilo que o homem faz, acredita, conhece e pensa sofre interferência também das ideias (representações) anteriormente elaboradas; ao mesmo tempo, as novas representações geram transformações na produção de sua existência.
        Novamente, percebe-se que o desenvolvimento do homem e de sua história não depende de um único fator. Seu desenvolvimento ocorre a partir das necessidades materiais; estas, bem como a forma de satisfazê-las, a forma de se relacionar para tal, as próprias ideias, o próprio homem e a natureza que o circunda são interdependentes, formando uma rede de interferências recíprocas. Daí decorre ser este um processo de transformação infinito, em que o próprio homem se produz. Nesse processo do desenvolvimento humano multideterminado e que envolve inter-relações e interferências recíprocas entre ideias e condições materiais, a base econômica será o determinante fundamental. Tais condições econômicas em sociedades baseadas na propriedade privada resultam em grupos com interesses conflitantes, com possibilidades diferentes no interior da sociedade, ou seja, resultam num conflito entre classes. Em qualquer sociedade onde existam relações que envolvam interesses antagônicos, as ideias refletem essas diferenças. E, embora acabem por predominar aquelas que representam os interesses do grupo dominante, a possibilidade mesma de se produzir ideias que representam a realidade do ponto de vista de outro grupo reflete a possibilidade de transformação que está presente na própria sociedade. Portanto, é de se esperar que, num dado momento, existam representações diferentes e antagônicas do mundo. Por exemplo hoje, tanto as ideias políticas que pretendem conservar as condições existentes quanto as que pretendem transformá-las correspondem a interesses específicos às várias classes sociais.
          Dentre as ideias que o homem produz, parte delas constitui o conhecimento referente ao mundo. O conhecimento humano, em suas diferentes formas (senso comum, científico, teológico, filosófico, estético etc.), mesmo sendo incorreto ou parcial, ou expressando posições antagônicas, exprime condições materiais de um dado momento histórico.A ciência é uma das formas do conhecimento produzido pelo homem no decorrer de sua história. Portanto, a ciência também é determinada pelas necessidades materiais do homem em cada momento histórico, ao mesmo tempo que nelas interfere. Não apenas o homem contemporâneo produz ciência: sociedades remotas a produziram. A ciência caracteriza-se por ser a tentativa do homem entender e explicar racionalmente a natureza, buscando formular leis que, em última instância, permitem a atuação humana. Sendo histórica a ciência, o próprio significado que o entender e o explicar racional assumem se altera, refletindo o desenvolvimento e rupturas ocorridas nos diferentes momentos da História. Em outras palavras, os antagonismos presentes em cada modo de produção e as transformações de uma forma de produção a outra serão transpostos para as representações que o homem faz, inclusive, para o conhecimento. Serão transpostos para a forma como explica racionalmente o mundo, buscando superar a ilusão, o desconhecido, o imediato; buscando compreender de forma fundamentada as leis gerais que regem os fenômenos. Estas tentativas de propor explicações racionais tornam o próprio conhecer o mundo uma questão sobre a qual o homem reflete. Enquanto tentativa de explicar a realidade, a ciência se caracteriza por ser uma atividade metódica. É uma atividade que, ao se propor conhecer a realidade, busca atingi-la através de ações passíveis de serem reproduzidas. O método científico é um conjunto de concepções sobre o homem, a natureza e o próprio conhecimento, que sustentam um conjunto de regras de ação, de procedimentos, prescritos para se constituir conhecimento científico.
         O método não é único nem permanece exatamente o mesmo, porque reflete as condições históricas concretas (as necessidades, a organização social para satisfazê-las, o nível de desenvolvimento técnico, as ideias, conhecimentos já produzidos) do momento histórico em que o conhecimento foi elaborado.
A observação e a experimentação, por exemplo, procedimentos metodológicos que passam a ser considerados, a partir de Galileu (século XVI), como teste para conhecimento científico, não eram procedimentos utilizados para esse fim na Grécia e na Idade Média. Neste último período, a observação e a experimentação não eram critérios de aceitação das proposições, já que a autoridade de certos pensadores e a concordância com as afirmações religiosas eram o critério maior. A divergência com relação a que procedimentos levam à produção de conhecimento está sustentada pelas concepções que os geram; ao se alterar a concepção que o homem tem sobre si, sobre o mundo, sobre o conhecimento (o papel que se atribui à ciência, o objeto a ser investigado etc.), todo o empreendimento científico se altera. O pensamento medieval que concebe o mundo como hierarquicamente ordenado segundo qualidades determinadas por natureza dadas e estáticas e que concebe o homem como sujeito aos desígnios de Deus – base de sua vida e de suas possibilidades –, gera uma concepção de conhecimento que, em relação indissolúvel e recíproca com as primeiras (homem e mundo), atribui à ciência um papel contemplativo dirigido para fundamentar e afirmar as verdades da fé. Essas concepções impedem que a comparação com o fenômeno observado leve à produção de um conhecimento que gere dúvidas sobre as proposições da Igreja, que apresenta suas ideias como inquestionáveis, já que reveladas por Deus.
Assim, a possibilidade de propor determinadas teorias, os critérios de aceitação bem como a proposição ou não de determinados procedimentos na produção científica refletem aspectos mais gerais e fundamentais do próprio método. A mudança das concepções implica necessariamente nova forma de ver a realidade, novo modo de atuação para obtenção do conhecimento, uma transformação no próprio conhecimento; muda, portanto, a forma de interferir na realidade.
        O método científico é historicamente determinado e só pode ser compreendido dessa forma. O método é o reflexo das nossas necessidades e possibilidades materiais, ao mesmo tempo em que nelas interfere. Os métodos científicos transformam-se no decorrer da História. No entanto, num dado momento histórico, podem existir diferentes interesses e necessidades; em tais momentos, coexistem também diferentes concepções de homem, de natureza e de conhecimento, portanto, diferentes métodos. Assim, as diferenças metodológicas ocorrem não apenas temporalmente, mas também num mesmo momento e numa mesma sociedade.
        As análises que serão apresentadas neste livro fundamentam-se na compreensão da ciência como parte das ideias produzidas pelo homem para satisfazer suas necessidades materiais, portanto, por elas determinadas e nelas interferindo. Só se pode entender a produção do conhecimento científico – que teve e tem interferência na direção tomada pelo ser humano – se forem analisadas as condições concretas que condicionaram e condicionam sua produção, sem excluir a análise da dinâmica interna da própria ciência (negar a relativa autonomia do conhecimento científico é fazer uma avaliação, pelo menos, simplista da relação que a ciência e a sociedade guardam entre si).
Na tentativa de recuperar as determinações históricas, o método adquire papel fundamental e privilegiado, pois sendo o método sujeito às mesmas interferências, determinações e transformações a que a ciência como um todo está sujeita, ele também depende tanto do estudo de sua relação com o próprio momento em que surge, quanto das alterações e interferências que sofre e provoca em diferentes momentos históricos. Assim, neste livro serão abordadas as concepções metodológicas que vigoraram em diferentes modos de produção – escravista, feudal, transição para o capitalismo e seu advento – assumindo o olhar para a História como caminho para compreensão da ciência hoje. (As Autoras)
POSFÁCIO
       Ciência hoje é algo aparentemente conhecido de qualquer pessoa e todos nós temos alguma coisa a dizer sobre ela; no mínimo, parecemos ser capazes de avaliá-la. Há, pelo menos, dois tipos de opinião muito difundidos sobre a ciência: de um lado, a avaliação que a considera como uma força de progresso, como fonte de benefício para a humanidade, enfim como “necessária e boa”; de outro lado, uma avaliação que a considera como uma força de opressão, como fonte de destruição do homem e da natureza, enfim como “perigosa e má”. Sem considerar o mérito destas avaliações, ou mesmo se são as únicas existentes, elas revelam o fato de que tendemos a avaliar a ciência primordialmente por seus produtos tecnológicos. Esta é, sem dúvida, uma possibilidade e, indiscutivelmente, se deve à própria atividade científica hoje desenvolvida. É fato que os produtos tecnológicos, frutos da atividade científica, estão presentes em nosso cotidiano e são marca da vida do século XX.
Entretanto, se esta pode ser considerada marca da ciência contemporânea, sua própria compreensão implica não apenas a análise daquilo que aparece como produto da ciência – a técnica – mas, depende principalmente da análise das condições que determinam a ciência como produtora de tecnologia. Além disso, o binômio ciência-tecnologia caracteriza a ciência dos nossos dias, isto é, não é marca que permite falar de ciência através da história, a não ser como característica negativa – do que a ciência não produziu em outros momentos da história; e, mais, mesmo em nossos dias, não é, em absoluto, a única marca da ciência.
Ao olhar mais de perto a ciência, ao olhar mais de perto seu produto, percebe-se que ele não se esgota na tecnologia, que uma parte integrante e essencial do empreendimento científico, no que se refere ao seu resultado, é a explicação. A tentativa de explicar – de descobrir as leis que regem os fenômenos – tem se constituído em marca fundamental da ciência nos diferentes momentos da história. Este explicar científico tem também, nos diferentes momentos da história, sido adjetivado como um explicar racional, o que significa que a explicação deve, através de um trabalho humano, desvendar as leis que devem expor o fenômeno à compreensão humana, isto é, eliminar seus segredos: ao explicar racionalmente não se busca a explicação no mistério, ao contrário, a explicação elimina o mistério, revelando, a um só tempo, aquilo que se sabe e aquilo que não se sabe, tornando a relação do homem com o conhecimento uma relação em que o homem passa, por assim dizer, a ter o fenômeno em suas mãos, o que, em última instância, permite ao homem interferir naquilo que conhece. Se esta é uma marca que nos permite falar da ciência no decorrer da história, porque é uma marca que se encontra em todos os momentos, enunciá-la diz pouco sobre o que foi a ciência em cada momento e quase nada sobre seu desenvolvimento, sua história. Apesar da explicação racional buscar, pela via do esforço humano, o desvendamento dos fenômenos, o significado preciso que isto tem em cada momento, e até mesmo dentro de um mesmo período histórico, é diferente. E é, exatamente, o reconhecimento destas diferenças e de suas raízes que permite compreender a história da ciência, compreender como ela chegou, em nosso século, a estar tão intimamente vinculada à tecnologia, a ponto de parecer secundário, ao caracterizá-la hoje, o explicar racional.
         Este reconhecimento implica, primeiramente, admitir que o apontar a explicação racional como marca fundamental da ciência já se constitui em uma possibilidade, entre outras diferentes, de caracterização da ciência. Poder-se-ia, por exemplo, apontar como marcas fundamentais do empreendimento científico: a busca de precisão, a mensuração e a experimentação como procedimentos para produção de conhecimento, a utilização de modelos lógico-matemáticos na construção e expressão do conhecimento, a verificabilidade do conhecimento produzido, a falseabilidade do conhecimento produzido a satisfação da curiosidade humana, enquanto tal, como fonte da produção de conhecimento, a compreensão dos fenômenos como fruto da intuição ou da inteligência humana ou, ainda, o conhecimento como fruto de uma capacidade interpretativa. Estas outras possibilidades, consideradas isoladamente ou combinadas entre si, podem ser tomadas por, ou defendidas como características fundamentais da ciência em algum momento da história ou por grupos de indivíduos em diferentes períodos. Entretanto, mesmo sem discutir sua validade, estas não se constituem em marcas que permitem abordar a história da produção científica porque assumir qualquer uma delas significaria eliminar, desta história, todas as alternativas diferentes que, eventualmente, tenham sido produzidas ou, até mesmo, desconsiderar períodos históricos nos quais o conhecimento produzido não apresentava a(s) característica(s) assumida(s) como fundamental(is).
      Reconhecer a ciência como tentativa de explicar racionalmente os fenômenos, ao contrário, vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como atividade humana que se desenvolve a partir das primeiras tentativas do homem de conhecer o mundo à sua volta, de nele intervir, e que está presente em toda história humana, fazendo parte integrante dela, desde o momento em que este conhecimento, de uma origem prática, passa a ser elaborado com algum grau de abstração. Ao mesmo tempo, vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como uma atividade humana que não permanece idêntica, porque é historicamente determinada, que é produto do homem em condições históricas dadas, que se transforma à medida que o homem se transforma e que simultaneamente, interfere na própria história. Não será demais enfatizar que, se dentro desta alternativa a ciência pode ser discutida no decorrer da história humana, nem por isso ela passa a ser uma alternativa universalmente aceita, uma vez que, por definição, ela implica assumir o homem e seus produtos como determinantes e determinados por condições históricas concretas.
Deste ponto de vista, torna-se necessário, para compreender a ciência hoje, recuperar sua história, reconhecer em sua historicidade as raízes que originam e determinam o movimento que hoje lhe é peculiar, e mais, buscar neste movimento a construção da própria história – reconhecer a ciência como construção que é infinita e que pode ser direcionada a partir do conhecimento de seus determinantes; compreender a ciência em sua própria história implica, assim, a possibilidade de compreendê-la hoje e a possibilidade de dar uma direção à construção de seu futuro. O exame destes determinantes conduz às condições materiais que, em cada momento, ao configurar uma determinada sociedade, caracterizam o viver do homem e conduz, também às condições decorrentes do desenvolvimento do próprio conhecimento, que, ao ser produzido, gera novas questões porque aponta os seus limites, permitindo descortinar os problemas e as alternativas existentes na explicação dada e revelando o que ainda não é conhecido. Se há a necessidade de distinguir estes dois conjuntos de determinantes, distingui-los não deve significar tomá-los como estanques, pelo contrário, há entre eles uma íntima relação. A própria afirmação, bastante difundida, de uma relativa autonomia do conhecimento científico já expressa a noção de que se existe um desenvolvimento da ciência que é determinado pelo próprio conhecimento produzido, ele não é ilimitado, não é indefinido; as fronteiras, no sentido de direção e possibilidade, deste desenvolvimento advém das condições históricas em que este conhecimento é produzido. O caráter mesmo de crítica, que é uma das alternativas do conhecimento científico, se inscreve nas possibilidades de superação contidas no seio da sociedade. Enquanto a caracterização da ciência como atividade humana que busca explicações racionais permite falar de ciência no decorrer da história, é a análise de outra característica essencial do empreendimento científico – o método – que permite, de maneira mais radical, compreender esta história, já que ao revelar a historicidade do método, revela-se, ao mesmo tempo e definitivamente, a historicidade de todo o empreendimento científico, eliminando, assim, o último reduto daquilo que se poderia considerar a-histórico na ciência. A análise dos métodos que originam as explicações científicas permite desvendar as exigências com as quais a ciência se defrontou, as possibilidades de soluções que se entreviam e os rumos efetivamente trilhados pelo empreendimento científico. Isto porque, ao expressar a maneira do homem se relacionar com seu objeto de estudo para produzir conhecimento, ao constituir o caminho necessário para a explicação, o método carrega concepções de homem, de natureza, de sociedade, de história, de conhecimento que trazem a marca do momento histórico no qual o conhecimento é produzido, explicitando, assim, quais as exigências atendidas, quais as possibilidades realizadas.
           Se o caminho para compreender a ciência hoje está em recuperar o caminho percorrido pela elaboração dos seus métodos, não é simples decidir em que momento se inicia tal recuperação. Talvez a única decisão não arbitrária fosse acompanhar a elaboração do pensamento humano desde o momento em que os vestígios deixados pelo homem permitissem identificar como se dava a relação homem-natureza, como o homem nela intervia, como concebia esta própria relação, a si mesmo e o mundo a seu redor. Já contendo algum grau de arbitrariedade, poder-se-ia iniciar tal percurso, pelas antigas civilizações, como as do Egito, da Mesopotâmia, da Índia e da China, que indiscutivelmente, conheceram um enorme avanço técnico e produziram conhecimentos em várias áreas, utilizando, para isto, métodos que poderiam ser pelo menos inferidos a partir do estudo de sua realidade e do conhecimento que produziram. No entanto, nestas civilizações, as características econômicas e a organização política e social não tornaram possível que o conhecimento produzido e que as técnicas utilizadas fossem ponto de partida para uma reflexão sobre os métodos que permitiram tais realizações. É exatamente esta característica, é o fato de o povo grego ter sido capaz por condições históricas muito especiais, de refletir sobre o método que está necessariamente contido na produção de conhecimento, que torna a civilização grega um ponto de partida privilegiado para a recuperação da historicidade dos métodos. Embora essa característica não elimine a arbitrariedade da decisão tomada, pelo menos auxilia na possibilidade de compreendê-la. Ao lado disso, não se pode perder de vista dois outros fatores que interferiram nesta decisão. A preocupação em discutir a história dos métodos com o objetivo de compreender a ciência aqui e hoje também remete à Grécia, já que é deste povo que se deriva – em linha quase que direta – a construção racional de conhecimento.
E, finalmente, não se pode perder de vista que não é possível olhar para a história completamente despojados das marcas que são as de nosso tempo, e estas marcas, dentre elas a complexidade e extremada abstração do método científico hoje, acabam por nos remeter àqueles que parecem ter dado início a este estado de coisas. Se as características econômico-sociais tornaram possível o surgimento na Grécia, da preocupação com o método na produção de conhecimento, é fundamentalmente, a partir do desenvolvimento e da transformação destas características, das contradições nelas contidas e das formas de superação que se efetivaram que se pode entender as grandes transformações por que passaram os métodos científicos. Transformações que não foram, e não poderiam ser linearmente cumulativas e que não foram únicas ou homogêneas dentro de um mesmo período, que se expressavam, frequentemente, através do embate de diferentes posturas e diferentes concepções, a um só tempo refletindo tais contradições e tornando-se mais um elemento dentre as condições de reprodução ou superação das próprias contradições materiais de que se originaram. As diferentes concepções metodológicas e as contraposições que nelas se desenvolveram, no entanto, não podem ser tomadas como reflexo mecânico das condições materiais em que se inserem, não apenas por causa de uma relativa autonomia do conhecimento, mas também, e principalmente, porque cada aspecto que marca uma dada concepção, se considerado em sua generalidade, não se mantém idêntico e não se mantém na mesma relação com os demais aspectos de uma dada concepção; mais que isto, seu significado, ao refletir as condições históricas a que responde, não é sempre o mesmo. Considere-se, a título de exemplo, algumas contraposições, que frequentemente são utilizadas para ilustrar os embates que de alguma forma marcaram a história da elaboração dos métodos científicos.
Uma dessas contraposições refere-se ao conceito de causalidade. A explicação racional envolve, num determinado momento, a busca das causas dos fenômenos, com conotação teleológica, qualitativa e que envolve a procura de essências. A busca das causas vai, gradativamente, sendo substituída pelo estudo das propriedades dos objetos do conhecimento, mais condizentes com a construção de leis gerais universais que expressem clara e matematicamente essas propriedades. Num primeiro momento, as leis expressam as relações mecânicas entre os fenômenos para, finalmente, na proposta de estudo do social, aparecer como indicação de leis históricas, não mecânicas. Isto significa mostrar os fenômenos (sociais) como parte de um movimento.
         Esta proposta teórica não segue nem o modelo a-histórico da mecânica, nem um modelo histórico que envolva apenas a compreensão da sequência de ocorrência do fenômeno. Intimamente vinculada às diferentes noções de causa e de lei, possivelmente sustentando-as, encontram-se diferentes concepções de mundo. Partindo de uma visão de mundo fechado, acabado, finito e hierarquizado, visão que preponderou por muitos séculos, somente a partir do século XVI, surge, para logo se tornar hegemônica, uma visão de mundo que, apesar de pronto em seu essencial, era visto como infinito, eterno e passível de ser conhecido quantitativamente. E é no século XIX que se encontra, por um lado, o auge desta concepção, estendendo-a dos fenômenos da natureza para os homens e a vida social e, por outro lado, seu mais forte contraponto, com a concepção de que o mundo é não apenas infinito, mas está em contínua construção, que é algo que se transforma e que tem história. Uma outra contraposição que surge refere-se ao meio através do qual se chega ao conhecimento. Com relação a este aspecto, parte-se, na trajetória do conhecimento, de um momento impregnado de misticismo, em que a crença é a via para a construção do saber, para dar lugar a um momento de ênfase na racionalidade, em que se passa a refletir sobre a validade da observação, do uso dos sentidos, e da razão como vias para o saber, com nítida preferência pela razão, enquanto tendência geral do período; segue-se, na Europa ocidental, um momento de retorno à fé como caminho para o conhecimento, que dá lugar, depois, à volta da valorização da racionalidade, sendo que aqui observação e razão disputam o reconhecimento como a via mais adequada para a verdade. Nesse momento, aparecem diferentes ênfases a uma e outra: desde uma total ênfase aos sentidos, à observação, a ponto de excluir a razão do processo de conhecimento, até uma ênfase total à razão. Entre essas posturas extremas, há uma série de outras, que não desconsideram qualquer dos dois elementos, embora os valorizem distintamente. Essa contraposição sentidos-razão permanece em nossos dias, sendo que à defesa da razão como caminho para o conhecimento associam-se preocupações com a lógica e a linguagem, enquanto a observação aparece associada à experimentação definitivamente incorporada à atividade científica, e entendida tanto como experiência organizada e controlada quanto como experiência oferecida pela produção. Esta contraposição entre razão e observação, para ser completamente compreendida, necessita ser inserida dentro de uma contraposição mais geral: a que se refere às diferentes maneiras de se conceber o papel do sujeito na produção de conhecimento. Se, de um lado, parece que a suposição de um sujeito que é ativo na produção do conhecimento esteve sempre associada a uma valorização da razão, por outro, não se pode dizer o mesmo de uma associação entre sujeito passivo e observação. Em alguns momentos, a defesa da observação como procedimento para produzir conhecimento refletiu uma concepção de um sujeito a que cabia meramente reproduzir o mundo tal como este era e se imprimia no homem; em outros, esteve associada a uma concepção que via o sujeito como possuidor de determinados mecanismos não meramente sensoriais, que lhe permitiam, através da observação, estabelecer relações sobre o real.
O problema desta contraposição entre sujeito ativo e passivo – associado ao uso da razão ou da observação – só é superado no século XIX, quando se reconhece no sujeito um papel ativo, sem tirar do conhecimento seu caráter de ser representativo do real, ao mesmo tempo que condiciona este sujeito a determinações históricas, buscando as raízes objetivas da subjetividade. Ao fazer isto, supera também a dicotomia entre razão e observação, estabelecendo um novo nível de colocação do problema na relação entre teoria e prática.
Estreitamente vinculada aos aspectos já discutidos, aparece a contraposição relativa ao papel que se atribui à ciência, que ora é vista como uma atividade contemplativa – em que o conhecimento é um fim em si mesmo, visando à satisfação do impulso humano de saber e não à aplicação prática – ora como atividade cujo objetivo é a melhoria das condições de vida do homem, como se deu a partir do momento em que houve intenso desenvolvimento da produção, aliado à ascensão da burguesia. A partir de então, surge a concepção de que a ciência deve servir ao progresso, ao bem-estar do homem, embora para alguns pensadores este não seja um objetivo da atividade científica, ainda que considerem esta possibilidade; num momento seguinte, passa-se a considerar a ciência como uma necessidade prática, para a solução dos problemas produtivos; até que, em nossos dias, ela aparece como força produtiva, não sendo mais possível a separação entre ciência e indústria. Estas são apenas algumas das contraposições que foram surgindo ao longo da história da ciência e que nos ajudam a compreender como a atividade científica, em determinados momentos impregnada de misticismo, indistinta da filosofia, não reconhecida e desvinculada da prática, chega a ser o que hoje é: uma atividade em que a racionalidade atinge alto grau, ocupando um lugar próprio, distinta da filosofia, reconhecida e valorizada, e com um vínculo tão estreito com a produção que hoje em dia não é possível falar em ciência sem falar em tecnologia e vice-versa
                Embora tais características tornem a produção de conhecimento científico em nossos dias um empreendimento sofisticado e diferenciado em relação ao que foi em outros momentos históricos, parece lícito supor que as concepções metodológicas hoje em confronto têm suas origens nas ideias produzidas no século passado. Ainda que se acredite que até o fim do século XIX as grandes marcas metodológicas necessárias para compreender a ciência hoje, estavam elaboradas, isto não quer dizer que o século XX não tenha produzido nada além. Quer dizer apenas que até aquele momento histórico estavam presentes as bases das concepções que hoje se confrontam. As outras alternativas metodológicas que o século XX tem produzido, apresentam-se como derivações ou rupturas em relação às grandes marcas produzidas até o século XIX, derivações ou rupturas que, entretanto, não ultrapassam os limites dos paradigmas já colocados.
O retomar daquelas ideias se dá, porém, num contexto diferenciado de desenvolvimento do capitalismo, o que gera a colocação de novos problemas que encontram solução nas ideias antes produzidas, mas que agora, redimensionadas, ganham novas feições. Num contexto onde diferentes métodos coexistem, cada um deles parece estar sendo explorado ao máximo; é como se se levasse às últimas consequências os modelos metodológicos até então produzidos: surgem novas teorias, que revolucionam áreas inteiras do saber, no que se refere às explicações produzidas; surgem novas áreas do conhecimento; o conhecimento é produzido em uma velocidade e em um volume jamais imaginados; a variedade e quantidade de aplicações tecnológicas advindas da atividade científica aumentam imensamente, na mesma medida em que diminui a distância entre a produção da explicação e sua aplicação tecnológica. Obviamente tais mudanças colocam problemas metodológicos novos que, entretanto, ainda encontram o fundamento de suas respostas nos paradigmas até então elaborados. A discussão desses novos problemas, entretanto, pode exatamente constituir-se em condição para a geração de novos modelos metodológicos em resposta às questões que hoje se colocam. Novos modelos que, ao responderem tais questões, o façam superando as alternativas até então propostas e gerando novos problemas que, certamente, irão refletir circunstâncias históricas próprias ao momento em que forem produzidos. Todas as transformações que aparecem como as marcas da ciência do século XX são, na verdade, produtos daquilo que se constitui sua principal característica: ser força produtiva direta. No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, a ciência está colocada a serviço do aparato produtivo, atendendo suas exigências e antecipando-se a elas. A relação ciência-produção se estreita a tal ponto que, pode-se dizer, sofre uma mudança qualitativa: o produto da atividade científica além de atender a necessidades imediatas pelo aparato produtivo, de antecipar estas necessidades, em muitos casos, impõe transformações na produção, transformações cuja origem extrapola a própria produção. Dizer da íntima relação entre ciência e produção no capitalismo é dizer da relação entre ciência e capital, o que coloca claramente uma determinada direção para o empreendimento científico. Por esta razão, mesmo quando a ciência se antecipa à produção, ela o faz atendendo às exigências do capital. Não é por acaso que diferentes ramos da ciência se desenvolvem desigualmente. Em função das possibilidades econômicas de aproveitamento de seu produto, são favorecidas, através de maior incentivo financeiro, e em detrimento de outras, aquelas ciências que geram tecnologia mais imediatamente passível de aplicação no processo produtivo. Não é também por acaso que frequentemente, o desenvolvimento científico-tecnológico fica aquém das reais possibilidades teóricas da ciência, retardando-se soluções que, embora relevantes a determinadas parcelas da população, não interessam ao capital.
             A divisão social do trabalho, que no capitalismo se caracteriza, entre outras coisas, por uma extremada fragmentação do trabalho e uma consequente agudizarão na distinção entre trabalho manual e intelectual, elitizando o trabalho intelectual desvalorizando o trabalho manual, encontra na ciência um recurso valioso para sua reprodução, ao mesmo tempo que interfere na organização e nos rumos do trabalho científico. As explicações científicas são apresentadas como se fossem neutras e plenamente objetivas e usadas como critério avalizador, além de criador, de ideias, valores e concepções tomados como verdadeiros e universais, o que serve para que se justifique o maior poder que se atribui àqueles que pretensamente detêm conhecimento, àqueles que a ele tem acesso. O crivo da “cientificidade” que separa o “certo” do “errado”, o “verdadeiro” do “falso”, o “Bem” do “Mal” é utilizado para apresentar justificativas ‘objetivas’ para a divisão e fragmentação do trabalho, ocultando o fato de que a ciência, também neste sentido, está a serviço dos interesses do capital. Tanto as chamadas ciências naturais quanto às ciências ditas humanas ou sociais se constituem segundo esta lógica.
               Ainda assim, e lembrando a determinação histórica a que a ciência está sujeita, cabe acentuar que a sociedade capitalista gera também algumas condições que podem encaminhar sua superação e as ideias científicas não fogem a essa regra. No âmbito das contradições internas próprias ao capitalismo, a ciência produz ideias que escapam ao quadro de submissão ao capital até aqui descrito e as ciências humanas, dada a especificidade de seu objeto de estudo, encontram-se em privilegiada posição no que se refere à produção dessas ideias.Também no que se refere à organização e produção do trabalho científico, é possível perceber o duplo movimento de referendar e negar aspectos essenciais do capitalismo. Assim, a divisão capitalista do trabalho tem seu reflexo na atividade científica, tornando-se ela também fragmentada, parcelada e hierarquizada. A atividade do cientista aborda parcelas progressivamente menores do real, levando-o à perda da visão de totalidade e do controle do produto de seu trabalho, dado que a própria ciência se divide em áreas cada vez mais especializadas e fragmentadas. Da mesma forma, o cientista, assim como os demais trabalhadores sob o capital, submete-se a relações de trabalho marcadas pela hierarquização e especialização, passando a responder a critérios, condições e funções que são impostos de fora do trabalho científico. Aí estão, talvez, algumas das razões por que a ciência hoje avança os limites metodológicos já colocados, uma vez que a superespecialização acaba por implicar que o método seja entendido como um conjunto de procedimentos, dificultando uma visão mais ampla dos reais problemas metodológicos colocados para a ciência. Contraditoriamente, é através da realização de seu trabalho que o cientista pode criticar as condições em que este trabalho se desenvolve. É em sua dimensão de trabalhador sob o capital que ele pode identificar as determinações mais gerais a que está submetido e pode, por isso, ultrapassar tais limites, constituindo-se em produtor de um conhecimento crítico, que não apenas permita desvendar as contradições que subjazem aos interesses do capital, mas aponte as condições de sua superação. Também do ponto de vista das alternativas metodológicas presentes na sociedade capitalista, é possível identificar tanto tendências que mais ou menos claramente se prestam à preservação das características desta sociedade, quanto concepções que remetem à sua transformação. Em uma dessas concepções, da mesma forma como o produto da ciência, que é visto como neutro e objetivo, o método também, principalmente naqueles campos mais de perto a serviço da produção, passa a ser considerado desta forma. Esta noção, que acaba por restringir método a procedimento, é fortalecida pela fragmentação do conhecimento que pressupõe que o próprio real e seu conhecimento são a soma de suas partes isoladas, e tem na proposta de um único método de investigação uma de suas marcas fundamentais. Esta concepção de método, que consistiria apenas de um conjunto de regras de ação coroa a defesa do empreendimento científico como algo neutro, universal e a serviço do progresso e do bem-estar de toda a humanidade. Ao lado desta concepção, mas igualmente compatível com os interesses do capitalismo, encontra-se a concepção que defende, principalmente nas áreas mais próximas do homem, a impossibilidade de qualquer conhecimento objetivo, que o conhecimento é uma relação pessoal e intransferível do homem individual com o objeto do conhecimento e que o método é, em última instância, um ato de compreensão intuitiva do sujeito, tornando, assim, o conhecimento incontestável. Ao retirar do conhecimento qualquer vínculo com as determinações materiais, ao retirar a possibilidade de crítica e de transformação da realidade, tal concepção aproxima-se daquela que defende a neutralidade do empreendimento científico.
          Diferentemente dessas concepções, uma alternativa que aponte para a crítica e a ruptura com o capitalismo deve, necessariamente, supor o sujeito produtor de conhecimento, bem como seu objeto de estudo, como submetidos às determinações históricas advindas do momento em que o conhecimento é produzido. Supor que o sujeito e o objeto do conhecimento são historicamente determinados, significa reconhecer, como implicação, que o produto desta relação – o conhecimento que dela resulta, assim como o processo de sua construção, são igualmente determinados por condições históricas e, portanto, ideologicamente comprometidos. O reconhecimento da historicidade da ciência e de seu método constitui-se em passo fundamental para instrumentar a análise crítica de um empreendimento largamente produzido, difundido e consumido nos dias atuais.
RESENHA
               O homem é um ser natural, isto é, ele é um ser que faz parte da natureza; não se pode conceber o conjunto da natureza sem nela inserir a espécie humana. Ao mesmo tempo em que se constitui em ser natural, o homem diferencia-se da natureza, que é, como o diz Marx: “o corpo inorgânico do homem”; para sobreviver ele precisa com ela relacionar-se já que dela provêm as condições que lhe permitem perpetuar-se enquanto espécie; não se pode, portanto, conceber o homem sem a natureza e nem a natureza sem o homem.
O homem também atua sobre a natureza em função de suas necessidades e o faz para sobreviver enquanto espécie. No entanto, diferentemente de outros animais, o homem não se limita à imediaticidade das situações com que se depara; ultrapassa limites, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e de sua prole), não se restringindo às necessidades que se revelam no aqui e agora. É o processo de produção da existência humana porque o homem não só cria artefatos, instrumentos, como também desenvolve ideias (conhecimentos, valores, crenças) e mecanismos para sua elaboração (desenvolvimento do raciocínio, planejamento...). O processo de produção da existência humana é um processo social; o ser humano não vive isoladamente, ao contrário, depende de outros para sobreviver. Reconhecer a ciência como tentativa de explicar racionalmente os fenômenos, ao contrário, vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como atividade humana que se desenvolve a partir das primeiras tentativas do homem de conhecer o mundo à sua volta, de nele intervir, e que está presente em toda história humana, fazendo parte integrante dela, desde o momento em que este conhecimento, de uma origem prática, passa a ser elaborado com algum grau de abstração. O reconhecimento da historicidade da ciência e de seu método constitui-se em passo fundamental para instrumentar a análise crítica de um empreendimento largamente produzido, difundido e consumido nos dias atuais.
  



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