INTRODUÇÃO
OLHAR
PARA A HISTÓRIA: CAMINHO PARA A COMPREENSÃO DA CIÊNCIA HOJE
O
homem é um ser natural, isto é, ele é um ser que faz parte da natureza; não se
pode conceber o conjunto da natureza sem nela inserir a espécie humana. Ao
mesmo tempo em que se constitui em ser natural, o homem diferencia-se da
natureza, que é, como o diz Marx: “o corpo inorgânico do homem”; para
sobreviver ele precisa com ela relacionar-se já que dela provêm as condições
que lhe permitem perpetuar-se enquanto espécie; não se pode, portanto, conceber
o homem sem a natureza e nem a natureza sem o homem.
Na busca das condições para sua sobrevivência, o ser humano – assim como outros animais – atua sobre a natureza já que, através dessa interação, satisfaz suas necessidades; no entanto, a relação homem-natureza diferencia-se da interação animal-natureza no que diz respeito à forma de atuação A atividade dos animais, em relação à natureza, é biologicamente determinada; a sobrevivência da espécie se dá através de sua adaptação ao meio. O animal limita-se à imediaticidade das situações, atuando de forma a permitir a sobrevivência de si próprio e a de sua prole; isto se repete, com mínimas alterações, em cada nova geração.Por mais sofisticadas que possam ser as atividades animais – por exemplo, a casa feita pelo joão-de-barro ou a organização de um formigueiro – elas ocorrem com pequenas modificações na espécie, já que a transmissão da “experiência” é feita quase exclusivamente pelo código genético; o mesmo se pode dizer em relação às modificações que provocam na natureza, por mais elaboradas que possam parecer. Assim, se a atuação do animal sobre a natureza permite a sobrevivência da espécie, isso se dá em função de características biológicas, o que estabelece os limites da possibilidade de modificações que a atuação do animal provoca seja na natureza, seja em si próprio. O homem também atua sobre a natureza em função de suas necessidades e o faz para sobreviver enquanto espécie. No entanto, diferentemente de outros animais, o homem não se limita à imediaticidade das situações com que se depara; ultrapassa limites, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e de sua prole), não se restringindo às necessidades que se revelam no aqui e agora. A ação humana não é apenas biologicamente determinada, mas se dá principalmente pela incorporação das experiências e conhecimentos produzidos e transmitidos de geração a geração; a transmissão dessas experiências e conhecimentos – através da educação e da cultura – permite que, no homem, a nova geração não volte ao ponto de partida da que a precedeu. A atuação do homem diferencia-se da do animal porque, ao alterar a natureza, através de sua ação, torna-a humanizada; em outras palavras, a natureza adquire a marca da atividade humana. Ao mesmo tempo, o homem altera a si próprio através dessa interação; o homem vai se construindo, vai se diferenciando cada vez mais das outras espécies animais. A interação homem-natureza é um processo permanente de mútua transformação: esse é o processo de produção da existência humana. É o processo de produção da existência humana porque o ser humano vai se modificando, alterando aquilo que é necessário à sua sobrevivência. Velhas necessidades adquirem características diferentes; até mesmo as necessidades consideradas básicas – por exemplo, a alimentação – refletem a mudança ocorrida no homem; os hábitos e necessidades alimentares são hoje muito diferentes do que foram em outros momentos. A alteração, no entanto, não se limita à transformação de velhas necessidades: o homem cria novas necessidades que passam a ser tão fundamentais quanto as chamadas necessidades básicas à sua sobrevivência.
Na busca das condições para sua sobrevivência, o ser humano – assim como outros animais – atua sobre a natureza já que, através dessa interação, satisfaz suas necessidades; no entanto, a relação homem-natureza diferencia-se da interação animal-natureza no que diz respeito à forma de atuação A atividade dos animais, em relação à natureza, é biologicamente determinada; a sobrevivência da espécie se dá através de sua adaptação ao meio. O animal limita-se à imediaticidade das situações, atuando de forma a permitir a sobrevivência de si próprio e a de sua prole; isto se repete, com mínimas alterações, em cada nova geração.Por mais sofisticadas que possam ser as atividades animais – por exemplo, a casa feita pelo joão-de-barro ou a organização de um formigueiro – elas ocorrem com pequenas modificações na espécie, já que a transmissão da “experiência” é feita quase exclusivamente pelo código genético; o mesmo se pode dizer em relação às modificações que provocam na natureza, por mais elaboradas que possam parecer. Assim, se a atuação do animal sobre a natureza permite a sobrevivência da espécie, isso se dá em função de características biológicas, o que estabelece os limites da possibilidade de modificações que a atuação do animal provoca seja na natureza, seja em si próprio. O homem também atua sobre a natureza em função de suas necessidades e o faz para sobreviver enquanto espécie. No entanto, diferentemente de outros animais, o homem não se limita à imediaticidade das situações com que se depara; ultrapassa limites, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e de sua prole), não se restringindo às necessidades que se revelam no aqui e agora. A ação humana não é apenas biologicamente determinada, mas se dá principalmente pela incorporação das experiências e conhecimentos produzidos e transmitidos de geração a geração; a transmissão dessas experiências e conhecimentos – através da educação e da cultura – permite que, no homem, a nova geração não volte ao ponto de partida da que a precedeu. A atuação do homem diferencia-se da do animal porque, ao alterar a natureza, através de sua ação, torna-a humanizada; em outras palavras, a natureza adquire a marca da atividade humana. Ao mesmo tempo, o homem altera a si próprio através dessa interação; o homem vai se construindo, vai se diferenciando cada vez mais das outras espécies animais. A interação homem-natureza é um processo permanente de mútua transformação: esse é o processo de produção da existência humana. É o processo de produção da existência humana porque o ser humano vai se modificando, alterando aquilo que é necessário à sua sobrevivência. Velhas necessidades adquirem características diferentes; até mesmo as necessidades consideradas básicas – por exemplo, a alimentação – refletem a mudança ocorrida no homem; os hábitos e necessidades alimentares são hoje muito diferentes do que foram em outros momentos. A alteração, no entanto, não se limita à transformação de velhas necessidades: o homem cria novas necessidades que passam a ser tão fundamentais quanto as chamadas necessidades básicas à sua sobrevivência.
É o
processo de produção da existência humana porque o homem não só cria artefatos,
instrumentos, como também desenvolve ideias (conhecimentos, valores, crenças) e
mecanismos para sua elaboração (desenvolvimento do raciocínio,
planejamento...). A criação de instrumentos, a formulação de ideias e formas
específicas de elaborá-los – características identificadas como eminentemente
humanas – são fruto da interação homem-natureza. Por mais sofisticadas que
possam parecer, as ideias são produtos de e exprimem as relações que o homem
estabelece com a natureza na qual se insere.
É o
processo da produção da existência humana porque cada nova interação reflete
uma natureza modificada – pois nela incorporam-se criações antes inexistentes;
reflete, também, um homem já modificado – pois suas necessidades, condições e
caminhos para satisfazê-las são outros que foram sendo construídos pelo próprio
homem. É nesse processo que o homem adquire consciência de que está
transformando a natureza para adaptá-la a suas necessidades, característica que
vai diferenciá-lo: a ação humana, ao contrário da de outros animais, é
intencional e planejada; em outras palavras, o homem sabe que sabe. O processo
de produção da existência humana é um processo social; o ser humano não vive
isoladamente, ao contrário, depende de outros para sobreviver. Há
interdependência dos seres humanos em todas as formas da atividade humana;
quaisquer que sejam suas necessidades – da produção de bens à elaboração de
conhecimentos, costumes, valores... – elas são criadas, atendidas e
transformadas a partir da organização e do estabelecimento de relações entre os
homens. Na base de todas as relações humanas, determinando e condicionando a
vida, está o trabalho – uma atividade humana intencional que envolve formas de
organização, objetivando a produção dos bens necessários à vida humana. Essa
organização implica uma dada maneira de dividir o trabalho necessário à
sociedade sendo determinada – e condicionando ao mesmo tempo, pelo nível
técnico e pelos meios existentes para o trabalho, determinando relações entre
os homens, inclusive no tocante à propriedade dos instrumentos e materiais
utilizados e à apropriação do produto do trabalho. As relações de trabalho – a
forma de dividi-lo, organizá-lo, ao lado do nível técnico dos instrumentos de
trabalho, dos meios disponíveis para a produção de bens materiais – compõem a
base econômica de uma dada sociedade. É essa base econômica que determina as
formas políticas, jurídicas e o conjunto das ideias que existem em cada
sociedade. É a transformação dessa base econômica, a partir das contradições
que ela mesma engendra, que leva à transformação de toda a sociedade,
implicando um novo modo de produção e uma nova forma de organização política e
social. Por exemplo, nas sociedades tribais (comunais) o grupo social
organiza-se por sexo e idade para produzir os bens necessários à sua
sobrevivência. Às mulheres e crianças cabiam determinadas tarefas e aos homens,
outras. Essa primeira divisão do trabalho, além de garantir a sobrevivência do
grupo, gerou um conjunto de instrumentos, técnicas, valores, costumes, crenças,
conhecimentos, organização familiar etc. A propriedade dos instrumentos de
trabalho, bem como a propriedade do produto do trabalho (a caça, o peixe etc.)
eram de toda a comunidade. A transmissão das técnicas, valores, conhecimentos
etc. era feita, basicamente, através da comunicação oral e do contato pessoal,
diferentemente do que ocorre atualmente. Já na Grécia Antiga, por volta de 800
a.C., o comércio fundado na exportação e importação agrícolas e artesanais, é a
base da atividade econômica, e há um nível técnico de produção desenvolvido ao
lado de uma organização política na forma de cidades-estados. Nessa sociedade,
além da divisão do trabalho cidade-campo, ocorre uma divisão entre os
produtores de bens e os donos da produção; os produtores não detêm a
propriedade da terra, nem os instrumentos de trabalho e nem o próprio produto
de seu trabalho; são, em sua maioria, eles mesmos, propriedade de outros
homens. Nessa sociedade, as relações estabelecidas entre os homens são
desiguais, onde alguns vivem do produto do trabalho de outros e onde a produção
de conhecimento é desenvolvida por aqueles que não executam o trabalho manual.
Ao
analisar, em cada momento histórico, os produtos da existência humana, as
ideias – sendo um desses produtos – não são exceções. As ideias são a expressão
das relações e atividades reais do homem, estabelecidas no processo de produção
de sua existência. Elas são a representação daquilo que o homem faz, da sua
maneira de viver, da forma como se relaciona com outros homens, do mundo que o
circunda e das suas próprias necessidades. Marx e Engels afirmam: “A produção
de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e
intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a
linguagem da vida real (...). Não é a consciência que determina a vida, mas sim
a vida que determina a consciência”. Isso não significa que o homem crie suas
representações mecanicamente: aquilo que o homem faz, acredita, conhece e pensa
sofre interferência também das ideias (representações) anteriormente
elaboradas; ao mesmo tempo, as novas representações geram transformações na
produção de sua existência.
Novamente,
percebe-se que o desenvolvimento do homem e de sua história não depende de um
único fator. Seu desenvolvimento ocorre a partir das necessidades materiais;
estas, bem como a forma de satisfazê-las, a forma de se relacionar para tal, as
próprias ideias, o próprio homem e a natureza que o circunda são
interdependentes, formando uma rede de interferências recíprocas. Daí decorre
ser este um processo de transformação infinito, em que o próprio homem se
produz. Nesse processo do desenvolvimento humano multideterminado e que envolve
inter-relações e interferências recíprocas entre ideias e condições materiais,
a base econômica será o determinante fundamental. Tais condições econômicas em
sociedades baseadas na propriedade privada resultam em grupos com interesses
conflitantes, com possibilidades diferentes no interior da sociedade, ou seja,
resultam num conflito entre classes. Em qualquer sociedade onde existam
relações que envolvam interesses antagônicos, as ideias refletem essas
diferenças. E, embora acabem por predominar aquelas que representam os
interesses do grupo dominante, a possibilidade mesma de se produzir ideias que
representam a realidade do ponto de vista de outro grupo reflete a
possibilidade de transformação que está presente na própria sociedade.
Portanto, é de se esperar que, num dado momento, existam representações
diferentes e antagônicas do mundo. Por exemplo hoje, tanto as ideias políticas
que pretendem conservar as condições existentes quanto as que pretendem
transformá-las correspondem a interesses específicos às várias classes sociais.
Dentre
as ideias que o homem produz, parte delas constitui o conhecimento referente ao
mundo. O conhecimento humano, em suas diferentes formas (senso comum,
científico, teológico, filosófico, estético etc.), mesmo sendo incorreto ou
parcial, ou expressando posições antagônicas, exprime condições materiais de um
dado momento histórico.A ciência é uma das formas do conhecimento produzido
pelo homem no decorrer de sua história. Portanto, a ciência também é
determinada pelas necessidades materiais do homem em cada momento histórico, ao
mesmo tempo que nelas interfere. Não apenas o homem contemporâneo produz
ciência: sociedades remotas a produziram. A ciência caracteriza-se por ser a
tentativa do homem entender e explicar racionalmente a natureza, buscando
formular leis que, em última instância, permitem a atuação humana. Sendo
histórica a ciência, o próprio significado que o entender e o explicar racional
assumem se altera, refletindo o desenvolvimento e rupturas ocorridas nos
diferentes momentos da História. Em outras palavras, os antagonismos presentes
em cada modo de produção e as transformações de uma forma de produção a outra
serão transpostos para as representações que o homem faz, inclusive, para o
conhecimento. Serão transpostos para a forma como explica racionalmente o
mundo, buscando superar a ilusão, o desconhecido, o imediato; buscando
compreender de forma fundamentada as leis gerais que regem os fenômenos. Estas
tentativas de propor explicações racionais tornam o próprio conhecer o mundo
uma questão sobre a qual o homem reflete. Enquanto tentativa de explicar a
realidade, a ciência se caracteriza por ser uma atividade metódica. É uma
atividade que, ao se propor conhecer a realidade, busca atingi-la através de
ações passíveis de serem reproduzidas. O método científico é um conjunto de
concepções sobre o homem, a natureza e o próprio conhecimento, que sustentam um
conjunto de regras de ação, de procedimentos, prescritos para se constituir
conhecimento científico.
O
método não é único nem permanece exatamente o mesmo, porque reflete as
condições históricas concretas (as necessidades, a organização social para
satisfazê-las, o nível de desenvolvimento técnico, as ideias, conhecimentos já
produzidos) do momento histórico em que o conhecimento foi elaborado.
A
observação e a experimentação, por exemplo, procedimentos metodológicos que
passam a ser considerados, a partir de Galileu (século XVI), como teste para
conhecimento científico, não eram procedimentos utilizados para esse fim na
Grécia e na Idade Média. Neste último período, a observação e a experimentação
não eram critérios de aceitação das proposições, já que a autoridade de certos
pensadores e a concordância com as afirmações religiosas eram o critério maior.
A divergência com relação a que procedimentos levam à produção de conhecimento
está sustentada pelas concepções que os geram; ao se alterar a concepção que o
homem tem sobre si, sobre o mundo, sobre o conhecimento (o papel que se atribui
à ciência, o objeto a ser investigado etc.), todo o empreendimento científico
se altera. O pensamento medieval que concebe o mundo como hierarquicamente
ordenado segundo qualidades determinadas por natureza dadas e estáticas e que concebe
o homem como sujeito aos desígnios de Deus – base de sua vida e de suas
possibilidades –, gera uma concepção de conhecimento que, em relação
indissolúvel e recíproca com as primeiras (homem e mundo), atribui à ciência um
papel contemplativo dirigido para fundamentar e afirmar as verdades da fé.
Essas concepções impedem que a comparação com o fenômeno observado leve à
produção de um conhecimento que gere dúvidas sobre as proposições da Igreja,
que apresenta suas ideias como inquestionáveis, já que reveladas por Deus.
Assim,
a possibilidade de propor determinadas teorias, os critérios de aceitação bem
como a proposição ou não de determinados procedimentos na produção científica
refletem aspectos mais gerais e fundamentais do próprio método. A mudança das
concepções implica necessariamente nova forma de ver a realidade, novo modo de
atuação para obtenção do conhecimento, uma transformação no próprio
conhecimento; muda, portanto, a forma de interferir na realidade.
O
método científico é historicamente determinado e só pode ser compreendido dessa
forma. O método é o reflexo das nossas necessidades e possibilidades materiais,
ao mesmo tempo em que nelas interfere. Os métodos científicos transformam-se no
decorrer da História. No entanto, num dado momento histórico, podem existir
diferentes interesses e necessidades; em tais momentos, coexistem também
diferentes concepções de homem, de natureza e de conhecimento, portanto,
diferentes métodos. Assim, as diferenças metodológicas ocorrem não apenas
temporalmente, mas também num mesmo momento e numa mesma sociedade.
As
análises que serão apresentadas neste livro fundamentam-se na compreensão da
ciência como parte das ideias produzidas pelo homem para satisfazer suas
necessidades materiais, portanto, por elas determinadas e nelas interferindo.
Só se pode entender a produção do conhecimento científico – que teve e tem
interferência na direção tomada pelo ser humano – se forem analisadas as
condições concretas que condicionaram e condicionam sua produção, sem excluir a
análise da dinâmica interna da própria ciência (negar a relativa autonomia do
conhecimento científico é fazer uma avaliação, pelo menos, simplista da relação
que a ciência e a sociedade guardam entre si).
Na
tentativa de recuperar as determinações históricas, o método adquire papel
fundamental e privilegiado, pois sendo o método sujeito às mesmas
interferências, determinações e transformações a que a ciência como um todo
está sujeita, ele também depende tanto do estudo de sua relação com o próprio
momento em que surge, quanto das alterações e interferências que sofre e
provoca em diferentes momentos históricos. Assim, neste livro serão abordadas
as concepções metodológicas que vigoraram em diferentes modos de produção –
escravista, feudal, transição para o capitalismo e seu advento – assumindo o
olhar para a História como caminho para compreensão da ciência hoje. (As
Autoras)
POSFÁCIO
Ciência
hoje é algo aparentemente conhecido de qualquer pessoa e todos nós temos alguma
coisa a dizer sobre ela; no mínimo, parecemos ser capazes de avaliá-la. Há,
pelo menos, dois tipos de opinião muito difundidos sobre a ciência: de um lado,
a avaliação que a considera como uma força de progresso, como fonte de
benefício para a humanidade, enfim como “necessária e boa”; de outro lado, uma
avaliação que a considera como uma força de opressão, como fonte de destruição
do homem e da natureza, enfim como “perigosa e má”. Sem considerar o mérito
destas avaliações, ou mesmo se são as únicas existentes, elas revelam o fato de
que tendemos a avaliar a ciência primordialmente por seus produtos
tecnológicos. Esta é, sem dúvida, uma possibilidade e, indiscutivelmente, se
deve à própria atividade científica hoje desenvolvida. É fato que os produtos
tecnológicos, frutos da atividade científica, estão presentes em nosso
cotidiano e são marca da vida do século XX.
Entretanto,
se esta pode ser considerada marca da ciência contemporânea, sua própria
compreensão implica não apenas a análise daquilo que aparece como produto da
ciência – a técnica – mas, depende principalmente da análise das condições que
determinam a ciência como produtora de tecnologia. Além disso, o binômio
ciência-tecnologia caracteriza a ciência dos nossos dias, isto é, não é marca
que permite falar de ciência através da história, a não ser como característica
negativa – do que a ciência não produziu em outros momentos da história; e,
mais, mesmo em nossos dias, não é, em absoluto, a única marca da ciência.
Ao
olhar mais de perto a ciência, ao olhar mais de perto seu produto, percebe-se
que ele não se esgota na tecnologia, que uma parte integrante e essencial do
empreendimento científico, no que se refere ao seu resultado, é a explicação. A
tentativa de explicar – de descobrir as leis que regem os fenômenos – tem se
constituído em marca fundamental da ciência nos diferentes momentos da
história. Este explicar científico tem também, nos diferentes momentos da
história, sido adjetivado como um explicar racional, o que significa que a
explicação deve, através de um trabalho humano, desvendar as leis que devem
expor o fenômeno à compreensão humana, isto é, eliminar seus segredos: ao
explicar racionalmente não se busca a explicação no mistério, ao contrário, a
explicação elimina o mistério, revelando, a um só tempo, aquilo que se sabe e
aquilo que não se sabe, tornando a relação do homem com o conhecimento uma
relação em que o homem passa, por assim dizer, a ter o fenômeno em suas mãos, o
que, em última instância, permite ao homem interferir naquilo que conhece. Se
esta é uma marca que nos permite falar da ciência no decorrer da história,
porque é uma marca que se encontra em todos os momentos, enunciá-la diz pouco
sobre o que foi a ciência em cada momento e quase nada sobre seu
desenvolvimento, sua história. Apesar da explicação racional buscar, pela via
do esforço humano, o desvendamento dos fenômenos, o significado preciso que
isto tem em cada momento, e até mesmo dentro de um mesmo período histórico, é
diferente. E é, exatamente, o reconhecimento destas diferenças e de suas raízes
que permite compreender a história da ciência, compreender como ela chegou, em
nosso século, a estar tão intimamente vinculada à tecnologia, a ponto de
parecer secundário, ao caracterizá-la hoje, o explicar racional.
Este
reconhecimento implica, primeiramente, admitir que o apontar a explicação
racional como marca fundamental da ciência já se constitui em uma
possibilidade, entre outras diferentes, de caracterização da ciência.
Poder-se-ia, por exemplo, apontar como marcas fundamentais do empreendimento
científico: a busca de precisão, a mensuração e a experimentação como procedimentos
para produção de conhecimento, a utilização de modelos lógico-matemáticos na
construção e expressão do conhecimento, a verificabilidade do conhecimento
produzido, a falseabilidade do conhecimento produzido a satisfação da
curiosidade humana, enquanto tal, como fonte da produção de conhecimento, a
compreensão dos fenômenos como fruto da intuição ou da inteligência humana ou,
ainda, o conhecimento como fruto de uma capacidade interpretativa. Estas outras
possibilidades, consideradas isoladamente ou combinadas entre si, podem ser
tomadas por, ou defendidas como características fundamentais da ciência em
algum momento da história ou por grupos de indivíduos em diferentes períodos. Entretanto,
mesmo sem discutir sua validade, estas não se constituem em marcas que permitem
abordar a história da produção científica porque assumir qualquer uma delas
significaria eliminar, desta história, todas as alternativas diferentes que,
eventualmente, tenham sido produzidas ou, até mesmo, desconsiderar períodos
históricos nos quais o conhecimento produzido não apresentava a(s)
característica(s) assumida(s) como fundamental(is).
Reconhecer
a ciência como tentativa de explicar racionalmente os fenômenos, ao contrário,
vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como atividade humana que se
desenvolve a partir das primeiras tentativas do homem de conhecer o mundo à sua
volta, de nele intervir, e que está presente em toda história humana, fazendo
parte integrante dela, desde o momento em que este conhecimento, de uma origem
prática, passa a ser elaborado com algum grau de abstração. Ao mesmo tempo,
vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como uma atividade humana que não
permanece idêntica, porque é historicamente determinada, que é produto do homem
em condições históricas dadas, que se transforma à medida que o homem se
transforma e que simultaneamente, interfere na própria história. Não será
demais enfatizar que, se dentro desta alternativa a ciência pode ser discutida
no decorrer da história humana, nem por isso ela passa a ser uma alternativa
universalmente aceita, uma vez que, por definição, ela implica assumir o homem
e seus produtos como determinantes e determinados por condições históricas
concretas.
Deste
ponto de vista, torna-se necessário, para compreender a ciência hoje, recuperar
sua história, reconhecer em sua historicidade as raízes que originam e
determinam o movimento que hoje lhe é peculiar, e mais, buscar neste movimento
a construção da própria história – reconhecer a ciência como construção que é
infinita e que pode ser direcionada a partir do conhecimento de seus
determinantes; compreender a ciência em sua própria história implica, assim, a
possibilidade de compreendê-la hoje e a possibilidade de dar uma direção à
construção de seu futuro. O exame destes determinantes conduz às condições
materiais que, em cada momento, ao configurar uma determinada sociedade,
caracterizam o viver do homem e conduz, também às condições decorrentes do
desenvolvimento do próprio conhecimento, que, ao ser produzido, gera novas
questões porque aponta os seus limites, permitindo descortinar os problemas e
as alternativas existentes na explicação dada e revelando o que ainda não é
conhecido. Se há a necessidade de distinguir estes dois conjuntos de
determinantes, distingui-los não deve significar tomá-los como estanques, pelo
contrário, há entre eles uma íntima relação. A própria afirmação, bastante
difundida, de uma relativa autonomia do conhecimento científico já expressa a
noção de que se existe um desenvolvimento da ciência que é determinado pelo
próprio conhecimento produzido, ele não é ilimitado, não é indefinido; as
fronteiras, no sentido de direção e possibilidade, deste desenvolvimento advém
das condições históricas em que este conhecimento é produzido. O caráter mesmo
de crítica, que é uma das alternativas do conhecimento científico, se inscreve
nas possibilidades de superação contidas no seio da sociedade. Enquanto a
caracterização da ciência como atividade humana que busca explicações racionais
permite falar de ciência no decorrer da história, é a análise de outra
característica essencial do empreendimento científico – o método – que permite,
de maneira mais radical, compreender esta história, já que ao revelar a
historicidade do método, revela-se, ao mesmo tempo e definitivamente, a
historicidade de todo o empreendimento científico, eliminando, assim, o último
reduto daquilo que se poderia considerar a-histórico na ciência. A análise dos
métodos que originam as explicações científicas permite desvendar as exigências
com as quais a ciência se defrontou, as possibilidades de soluções que se
entreviam e os rumos efetivamente trilhados pelo empreendimento científico.
Isto porque, ao expressar a maneira do homem se relacionar com seu objeto de
estudo para produzir conhecimento, ao constituir o caminho necessário para a
explicação, o método carrega concepções de homem, de natureza, de sociedade, de
história, de conhecimento que trazem a marca do momento histórico no qual o
conhecimento é produzido, explicitando, assim, quais as exigências atendidas,
quais as possibilidades realizadas.
Se o
caminho para compreender a ciência hoje está em recuperar o caminho percorrido
pela elaboração dos seus métodos, não é simples decidir em que momento se
inicia tal recuperação. Talvez a única decisão não arbitrária fosse acompanhar
a elaboração do pensamento humano desde o momento em que os vestígios deixados
pelo homem permitissem identificar como se dava a relação homem-natureza, como
o homem nela intervia, como concebia esta própria relação, a si mesmo e o mundo
a seu redor. Já contendo algum grau de arbitrariedade, poder-se-ia iniciar tal
percurso, pelas antigas civilizações, como as do Egito, da Mesopotâmia, da
Índia e da China, que indiscutivelmente, conheceram um enorme avanço técnico e produziram
conhecimentos em várias áreas, utilizando, para isto, métodos que poderiam ser
pelo menos inferidos a partir do estudo de sua realidade e do conhecimento que
produziram. No entanto, nestas civilizações, as características econômicas e a
organização política e social não tornaram possível que o conhecimento
produzido e que as técnicas utilizadas fossem ponto de partida para uma
reflexão sobre os métodos que permitiram tais realizações. É exatamente esta
característica, é o fato de o povo grego ter sido capaz por condições
históricas muito especiais, de refletir sobre o método que está necessariamente
contido na produção de conhecimento, que torna a civilização grega um ponto de
partida privilegiado para a recuperação da historicidade dos métodos. Embora
essa característica não elimine a arbitrariedade da decisão tomada, pelo menos
auxilia na possibilidade de compreendê-la. Ao lado disso, não se pode perder de
vista dois outros fatores que interferiram nesta decisão. A preocupação em
discutir a história dos métodos com o objetivo de compreender a ciência aqui e
hoje também remete à Grécia, já que é deste povo que se deriva – em linha quase
que direta – a construção racional de conhecimento.
E,
finalmente, não se pode perder de vista que não é possível olhar para a
história completamente despojados das marcas que são as de nosso tempo, e estas
marcas, dentre elas a complexidade e extremada abstração do método científico
hoje, acabam por nos remeter àqueles que parecem ter dado início a este estado
de coisas. Se as características econômico-sociais tornaram possível o
surgimento na Grécia, da preocupação com o método na produção de conhecimento,
é fundamentalmente, a partir do desenvolvimento e da transformação destas
características, das contradições nelas contidas e das formas de superação que
se efetivaram que se pode entender as grandes transformações por que passaram
os métodos científicos. Transformações que não foram, e não poderiam ser
linearmente cumulativas e que não foram únicas ou homogêneas dentro de um mesmo
período, que se expressavam, frequentemente, através do embate de diferentes
posturas e diferentes concepções, a um só tempo refletindo tais contradições e
tornando-se mais um elemento dentre as condições de reprodução ou superação das
próprias contradições materiais de que se originaram. As diferentes concepções
metodológicas e as contraposições que nelas se desenvolveram, no entanto, não
podem ser tomadas como reflexo mecânico das condições materiais em que se
inserem, não apenas por causa de uma relativa autonomia do conhecimento, mas
também, e principalmente, porque cada aspecto que marca uma dada concepção, se
considerado em sua generalidade, não se mantém idêntico e não se mantém na
mesma relação com os demais aspectos de uma dada concepção; mais que isto, seu
significado, ao refletir as condições históricas a que responde, não é sempre o
mesmo. Considere-se, a título de exemplo, algumas contraposições, que
frequentemente são utilizadas para ilustrar os embates que de alguma forma marcaram
a história da elaboração dos métodos científicos.
Uma
dessas contraposições refere-se ao conceito de causalidade. A explicação
racional envolve, num determinado momento, a busca das causas dos fenômenos,
com conotação teleológica, qualitativa e que envolve a procura de essências. A
busca das causas vai, gradativamente, sendo substituída pelo estudo das
propriedades dos objetos do conhecimento, mais condizentes com a construção de
leis gerais universais que expressem clara e matematicamente essas propriedades.
Num primeiro momento, as leis expressam as relações mecânicas entre os
fenômenos para, finalmente, na proposta de estudo do social, aparecer como
indicação de leis históricas, não mecânicas. Isto significa mostrar os
fenômenos (sociais) como parte de um movimento.
Esta
proposta teórica não segue nem o modelo a-histórico da mecânica, nem um modelo
histórico que envolva apenas a compreensão da sequência de ocorrência do
fenômeno. Intimamente vinculada às diferentes noções de causa e de lei,
possivelmente sustentando-as, encontram-se diferentes concepções de mundo.
Partindo de uma visão de mundo fechado, acabado, finito e hierarquizado, visão
que preponderou por muitos séculos, somente a partir do século XVI, surge, para
logo se tornar hegemônica, uma visão de mundo que, apesar de pronto em seu
essencial, era visto como infinito, eterno e passível de ser conhecido
quantitativamente. E é no século XIX que se encontra, por um lado, o auge desta
concepção, estendendo-a dos fenômenos da natureza para os homens e a vida
social e, por outro lado, seu mais forte contraponto, com a concepção de que o
mundo é não apenas infinito, mas está em contínua construção, que é algo que se
transforma e que tem história. Uma outra contraposição que surge refere-se ao
meio através do qual se chega ao conhecimento. Com relação a este aspecto,
parte-se, na trajetória do conhecimento, de um momento impregnado de
misticismo, em que a crença é a via para a construção do saber, para dar lugar
a um momento de ênfase na racionalidade, em que se passa a refletir sobre a
validade da observação, do uso dos sentidos, e da razão como vias para o saber,
com nítida preferência pela razão, enquanto tendência geral do período;
segue-se, na Europa ocidental, um momento de retorno à fé como caminho para o
conhecimento, que dá lugar, depois, à volta da valorização da racionalidade,
sendo que aqui observação e razão disputam o reconhecimento como a via mais
adequada para a verdade. Nesse momento, aparecem diferentes ênfases a uma e
outra: desde uma total ênfase aos sentidos, à observação, a ponto de excluir a
razão do processo de conhecimento, até uma ênfase total à razão. Entre essas
posturas extremas, há uma série de outras, que não desconsideram qualquer dos
dois elementos, embora os valorizem distintamente. Essa contraposição
sentidos-razão permanece em nossos dias, sendo que à defesa da razão como
caminho para o conhecimento associam-se preocupações com a lógica e a
linguagem, enquanto a observação aparece associada à experimentação definitivamente
incorporada à atividade científica, e entendida tanto como experiência
organizada e controlada quanto como experiência oferecida pela produção. Esta
contraposição entre razão e observação, para ser completamente compreendida,
necessita ser inserida dentro de uma contraposição mais geral: a que se refere
às diferentes maneiras de se conceber o papel do sujeito na produção de
conhecimento. Se, de um lado, parece que a suposição de um sujeito que é ativo
na produção do conhecimento esteve sempre associada a uma valorização da razão,
por outro, não se pode dizer o mesmo de uma associação entre sujeito passivo e
observação. Em alguns momentos, a defesa da observação como procedimento para
produzir conhecimento refletiu uma concepção de um sujeito a que cabia
meramente reproduzir o mundo tal como este era e se imprimia no homem; em
outros, esteve associada a uma concepção que via o sujeito como possuidor de
determinados mecanismos não meramente sensoriais, que lhe permitiam, através da
observação, estabelecer relações sobre o real.
O
problema desta contraposição entre sujeito ativo e passivo – associado ao uso
da razão ou da observação – só é superado no século XIX, quando se reconhece no
sujeito um papel ativo, sem tirar do conhecimento seu caráter de ser representativo
do real, ao mesmo tempo que condiciona este sujeito a determinações históricas,
buscando as raízes objetivas da subjetividade. Ao fazer isto, supera também a
dicotomia entre razão e observação, estabelecendo um novo nível de colocação do
problema na relação entre teoria e prática.
Estreitamente
vinculada aos aspectos já discutidos, aparece a contraposição relativa ao papel
que se atribui à ciência, que ora é vista como uma atividade contemplativa – em
que o conhecimento é um fim em si mesmo, visando à satisfação do impulso humano
de saber e não à aplicação prática – ora como atividade cujo objetivo é a
melhoria das condições de vida do homem, como se deu a partir do momento em que
houve intenso desenvolvimento da produção, aliado à ascensão da burguesia. A
partir de então, surge a concepção de que a ciência deve servir ao progresso,
ao bem-estar do homem, embora para alguns pensadores este não seja um objetivo
da atividade científica, ainda que considerem esta possibilidade; num momento
seguinte, passa-se a considerar a ciência como uma necessidade prática, para a
solução dos problemas produtivos; até que, em nossos dias, ela aparece como
força produtiva, não sendo mais possível a separação entre ciência e indústria.
Estas são apenas algumas das contraposições que foram surgindo ao longo da
história da ciência e que nos ajudam a compreender como a atividade científica,
em determinados momentos impregnada de misticismo, indistinta da filosofia, não
reconhecida e desvinculada da prática, chega a ser o que hoje é: uma atividade
em que a racionalidade atinge alto grau, ocupando um lugar próprio, distinta da
filosofia, reconhecida e valorizada, e com um vínculo tão estreito com a
produção que hoje em dia não é possível falar em ciência sem falar em tecnologia
e vice-versa
Embora
tais características tornem a produção de conhecimento científico em nossos
dias um empreendimento sofisticado e diferenciado em relação ao que foi em
outros momentos históricos, parece lícito supor que as concepções metodológicas
hoje em confronto têm suas origens nas ideias produzidas no século passado.
Ainda que se acredite que até o fim do século XIX as grandes marcas
metodológicas necessárias para compreender a ciência hoje, estavam elaboradas,
isto não quer dizer que o século XX não tenha produzido nada além. Quer dizer
apenas que até aquele momento histórico estavam presentes as bases das
concepções que hoje se confrontam. As outras alternativas metodológicas que o
século XX tem produzido, apresentam-se como derivações ou rupturas em relação
às grandes marcas produzidas até o século XIX, derivações ou rupturas que,
entretanto, não ultrapassam os limites dos paradigmas já colocados.
O
retomar daquelas ideias se dá, porém, num contexto diferenciado de
desenvolvimento do capitalismo, o que gera a colocação de novos problemas que
encontram solução nas ideias antes produzidas, mas que agora, redimensionadas,
ganham novas feições. Num contexto onde diferentes métodos coexistem, cada um
deles parece estar sendo explorado ao máximo; é como se se levasse às últimas
consequências os modelos metodológicos até então produzidos: surgem novas
teorias, que revolucionam áreas inteiras do saber, no que se refere às
explicações produzidas; surgem novas áreas do conhecimento; o conhecimento é produzido
em uma velocidade e em um volume jamais imaginados; a variedade e quantidade de
aplicações tecnológicas advindas da atividade científica aumentam imensamente,
na mesma medida em que diminui a distância entre a produção da explicação e sua
aplicação tecnológica. Obviamente tais mudanças colocam problemas metodológicos
novos que, entretanto, ainda encontram o fundamento de suas respostas nos paradigmas
até então elaborados. A discussão desses novos problemas, entretanto, pode
exatamente constituir-se em condição para a geração de novos modelos
metodológicos em resposta às questões que hoje se colocam. Novos modelos que,
ao responderem tais questões, o façam superando as alternativas até então
propostas e gerando novos problemas que, certamente, irão refletir
circunstâncias históricas próprias ao momento em que forem produzidos. Todas as
transformações que aparecem como as marcas da ciência do século XX são, na
verdade, produtos daquilo que se constitui sua principal característica: ser
força produtiva direta. No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, a
ciência está colocada a serviço do aparato produtivo, atendendo suas exigências
e antecipando-se a elas. A relação ciência-produção se estreita a tal ponto
que, pode-se dizer, sofre uma mudança qualitativa: o produto da atividade
científica além de atender a necessidades imediatas pelo aparato produtivo, de
antecipar estas necessidades, em muitos casos, impõe transformações na
produção, transformações cuja origem extrapola a própria produção. Dizer da
íntima relação entre ciência e produção no capitalismo é dizer da relação entre
ciência e capital, o que coloca claramente uma determinada direção para o
empreendimento científico. Por esta razão, mesmo quando a ciência se antecipa à
produção, ela o faz atendendo às exigências do capital. Não é por acaso que
diferentes ramos da ciência se desenvolvem desigualmente. Em função das
possibilidades econômicas de aproveitamento de seu produto, são favorecidas,
através de maior incentivo financeiro, e em detrimento de outras, aquelas
ciências que geram tecnologia mais imediatamente passível de aplicação no
processo produtivo. Não é também por acaso que frequentemente, o
desenvolvimento científico-tecnológico fica aquém das reais possibilidades
teóricas da ciência, retardando-se soluções que, embora relevantes a
determinadas parcelas da população, não interessam ao capital.
A
divisão social do trabalho, que no capitalismo se caracteriza, entre outras
coisas, por uma extremada fragmentação do trabalho e uma consequente agudizarão
na distinção entre trabalho manual e intelectual, elitizando o trabalho
intelectual desvalorizando o trabalho manual, encontra na ciência um recurso
valioso para sua reprodução, ao mesmo tempo que interfere na organização e nos
rumos do trabalho científico. As explicações científicas são apresentadas como
se fossem neutras e plenamente objetivas e usadas como critério avalizador,
além de criador, de ideias, valores e concepções tomados como verdadeiros e
universais, o que serve para que se justifique o maior poder que se atribui
àqueles que pretensamente detêm conhecimento, àqueles que a ele tem acesso. O
crivo da “cientificidade” que separa o “certo” do “errado”, o “verdadeiro” do
“falso”, o “Bem” do “Mal” é utilizado para apresentar justificativas
‘objetivas’ para a divisão e fragmentação do trabalho, ocultando o fato de que
a ciência, também neste sentido, está a serviço dos interesses do capital.
Tanto as chamadas ciências naturais quanto às ciências ditas humanas ou sociais
se constituem segundo esta lógica.
Ainda
assim, e lembrando a determinação histórica a que a ciência está sujeita, cabe
acentuar que a sociedade capitalista gera também algumas condições que podem
encaminhar sua superação e as ideias científicas não fogem a essa regra. No
âmbito das contradições internas próprias ao capitalismo, a ciência produz
ideias que escapam ao quadro de submissão ao capital até aqui descrito e as
ciências humanas, dada a especificidade de seu objeto de estudo, encontram-se
em privilegiada posição no que se refere à produção dessas ideias.Também no que
se refere à organização e produção do trabalho científico, é possível perceber
o duplo movimento de referendar e negar aspectos essenciais do capitalismo.
Assim, a divisão capitalista do trabalho tem seu reflexo na atividade
científica, tornando-se ela também fragmentada, parcelada e hierarquizada. A
atividade do cientista aborda parcelas progressivamente menores do real,
levando-o à perda da visão de totalidade e do controle do produto de seu
trabalho, dado que a própria ciência se divide em áreas cada vez mais
especializadas e fragmentadas. Da mesma forma, o cientista, assim como os
demais trabalhadores sob o capital, submete-se a relações de trabalho marcadas
pela hierarquização e especialização, passando a responder a critérios,
condições e funções que são impostos de fora do trabalho científico. Aí estão,
talvez, algumas das razões por que a ciência hoje avança os limites
metodológicos já colocados, uma vez que a superespecialização acaba por
implicar que o método seja entendido como um conjunto de procedimentos,
dificultando uma visão mais ampla dos reais problemas metodológicos colocados
para a ciência. Contraditoriamente, é através da realização de seu trabalho que
o cientista pode criticar as condições em que este trabalho se desenvolve. É em
sua dimensão de trabalhador sob o capital que ele pode identificar as
determinações mais gerais a que está submetido e pode, por isso, ultrapassar
tais limites, constituindo-se em produtor de um conhecimento crítico, que não apenas
permita desvendar as contradições que subjazem aos interesses do capital, mas
aponte as condições de sua superação. Também do ponto de vista das alternativas
metodológicas presentes na sociedade capitalista, é possível identificar tanto
tendências que mais ou menos claramente se prestam à preservação das
características desta sociedade, quanto concepções que remetem à sua
transformação. Em uma dessas concepções, da mesma forma como o produto da
ciência, que é visto como neutro e objetivo, o método também, principalmente
naqueles campos mais de perto a serviço da produção, passa a ser considerado
desta forma. Esta noção, que acaba por restringir método a procedimento, é
fortalecida pela fragmentação do conhecimento que pressupõe que o próprio real
e seu conhecimento são a soma de suas partes isoladas, e tem na proposta de um
único método de investigação uma de suas marcas fundamentais. Esta concepção de
método, que consistiria apenas de um conjunto de regras de ação coroa a defesa
do empreendimento científico como algo neutro, universal e a serviço do
progresso e do bem-estar de toda a humanidade. Ao lado desta concepção, mas
igualmente compatível com os interesses do capitalismo, encontra-se a concepção
que defende, principalmente nas áreas mais próximas do homem, a impossibilidade
de qualquer conhecimento objetivo, que o conhecimento é uma relação pessoal e
intransferível do homem individual com o objeto do conhecimento e que o método
é, em última instância, um ato de compreensão intuitiva do sujeito, tornando,
assim, o conhecimento incontestável. Ao retirar do conhecimento qualquer
vínculo com as determinações materiais, ao retirar a possibilidade de crítica e
de transformação da realidade, tal concepção aproxima-se daquela que defende a
neutralidade do empreendimento científico.
Diferentemente
dessas concepções, uma alternativa que aponte para a crítica e a ruptura com o
capitalismo deve, necessariamente, supor o sujeito produtor de conhecimento,
bem como seu objeto de estudo, como submetidos às determinações históricas
advindas do momento em que o conhecimento é produzido. Supor que o sujeito e o
objeto do conhecimento são historicamente determinados, significa reconhecer,
como implicação, que o produto desta relação – o conhecimento que dela resulta,
assim como o processo de sua construção, são igualmente determinados por
condições históricas e, portanto, ideologicamente comprometidos. O
reconhecimento da historicidade da ciência e de seu método constitui-se em
passo fundamental para instrumentar a análise crítica de um empreendimento
largamente produzido, difundido e consumido nos dias atuais.
RESENHA
O
homem é um ser natural, isto é, ele é um ser que faz parte da natureza; não se
pode conceber o conjunto da natureza sem nela inserir a espécie humana. Ao mesmo
tempo em que se constitui em ser natural, o homem diferencia-se da natureza,
que é, como o diz Marx: “o corpo inorgânico do homem”; para sobreviver ele
precisa com ela relacionar-se já que dela provêm as condições que lhe permitem
perpetuar-se enquanto espécie; não se pode, portanto, conceber o homem sem a
natureza e nem a natureza sem o homem.
O
homem também atua sobre a natureza em função de suas necessidades e o faz para
sobreviver enquanto espécie. No entanto, diferentemente de outros animais, o homem
não se limita à imediaticidade das situações com que se depara; ultrapassa
limites, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e
de sua prole), não se restringindo às necessidades que se revelam no aqui e
agora. É o processo de produção da existência humana porque o homem não só cria
artefatos, instrumentos, como também desenvolve ideias (conhecimentos, valores,
crenças) e mecanismos para sua elaboração (desenvolvimento do raciocínio,
planejamento...). O processo de produção da existência humana é um processo
social; o ser humano não vive isoladamente, ao contrário, depende de outros para
sobreviver. Reconhecer a ciência como tentativa de explicar racionalmente os
fenômenos, ao contrário, vincula-se à perspectiva de assumir a ciência como
atividade humana que se desenvolve a partir das primeiras tentativas do homem
de conhecer o mundo à sua volta, de nele intervir, e que está presente em toda
história humana, fazendo parte integrante dela, desde o momento em que este
conhecimento, de uma origem prática, passa a ser elaborado com algum grau de abstração.
O reconhecimento da historicidade da ciência e de seu método constitui-se em
passo fundamental para instrumentar a análise crítica de um empreendimento
largamente produzido, difundido e consumido nos dias atuais.
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