Como Becquerel não descobriu a
radioatividade
O texto a seguir é baseado no artigo de R.A. MARTINS, Como Becquerel não descobriu a radioatividade, publicado no Caderno Catarinense
de Ensino de Física 7 (1990) 27-45)
Introdução
Quase todos já ouviram falar sobre a descoberta da
radioatividade, que é um fenômeno pelo qual os núcleos atômicos sofrem
transformações e emitem radiações, podendo, nesse processo, formar novos
elementos químicos. Costuma-se dizer que esse fenômeno foi descoberto,
acidentalmente, por Henri Becquerel, em 1896. Tudo aconteceu porque Becquerel
guardou, em uma gaveta, um composto de urânio juntamente com uma chapa
fotográfica, havendo depois revelado a chapa e notado nela os sinais da
radiação. A história não é bem assim. Dificilmente se poderia afirmar que
Becquerel descobriu a radioatividade; e aquilo que ele de fato descobriu não
foi fruto do acaso.
Este capítulo mostrará qual foi o trabalho de Becquerel, o longo e
tortuoso caminho que levou à descoberta da radioatividade e discutirá as
dificuldades de compreensão dos fatos que eram observados. Esse episódio é
muito instrutivo, por mostrar claramente como as expectativas teóricas podem
influenciar as próprias observações, levando o pesquisador a ver coisas que não
existem.
A radiação dos corpos luminescentes
A descoberta dos raios X suscitou quase instantaneamente
um grande número de trabalhos na Academia de Ciências de Paris, e foi a
principal motivação para o trabalho inicial de Becquerel. Nesse sentido,
destaca-se, em particular, a hipótese levantada por Poincaré [1], de que havia
uma relação entre a emissão dos raios X e a fluorescência do vidro de que era
feito o tubo de raios X. Nas suas próprias palavras:
"É, portanto, o vidro que emite os raios Roentgen, e ele os emite
tornando-se fluorescente. Podemos nos perguntar se todos os corpos cuja
fluorescência seja suficientemente intensa não emitiriam, além de raios
luminosos, os raios X de Roentgen, qualquer que seja a causa de sua
fluorescência. Os fenômenos não seriam então associados a uma causa
elétrica. Isso não é muito provável, mas é possível e, sem dúvida, fácil de
verificar". [2].É a busca dessa relação entre fluorescência e raios X que irá
levar aos estudos de Becquerel. Na verdade, de acordo com os nossos
conhecimentos atuais, não existe relação direta entre a emissão de raios X e a
luminescência. Mas é graças a essa pista falsa que muitas descobertas serão
feitas. Vários trabalhos relacionados com a descoberta de Roentgen foram
apresentados na Academia nas primeiras sessões de 1896. Na sessão de
03/02/1896, Nodon informa que um arco voltaico não produz raios X, mas Moreau
comunica que eles são emitidos pela descarga de alta voltagem de uma bobina de
indução, sem a utilização de um tubo de vácuo e, portanto, sem raios catódicos.
Benoist e Hurmuzescu observam que os raios X são capazes de descarregar um
eletroscópio. Na outra semana (10/02/1896) aparece o primeiro trabalho
destinado a testar a sugestão de Poincaré.
Nessa sessão, Poincaré apresenta à Academia um trabalho de Charles
Henry. Ele testa inicialmente se o sulfeto de zinco fosforescente é capaz de
aumentar o efeito dos raios X e conclui que sim: se um objeto metálico é
parcialmente recoberto com uma camada de sulfeto de zinco, a radiografia desse
objeto fica mais forte e nítida na região recoberta do que na região sem
sulfeto de zinco. Ainda mais: utilizando a luz produzida pela queima de uma
fita de magnésio, em laboratório, Henry afirma ter conseguido obter efeitos
iguais aos de uma radiografia, bastando recobrir o objeto com uma camada de
sulfeto de zinco [3]. A hipótese de Poincaré parecia estar confirmada.
Na semana seguinte (17/02/1896), entre a já usual profusão de estudos sobre
os raios X, surge um trabalho de Niewenglowski que confirma e amplia os
resultados de henry. Ele utiliza um outro material fosforescente - o sulfeto de
cálcio. Eis sua descrição:
"Tendo envolvido uma folha de papel sensível ordinário (papel
fotográfico) com diversas camadas de papel agulha negro ou vermelho, coloquei
acima dela duas moedas e recobri uma das metades (da folha) com uma placa de
vidro com pó fosforescente (sulfeto de cálcio). Depois de quatro ou cinco horas
de exposição ao Sol, a metade do papel sensível que havia recebido diretamente
as radiações solares havia permanecido intacta e não apresentava nenhum sinal
da moeda colocada acima dela, indicando assim que o papel negro ou vermelho não
havia sido atravessado pela luz. A metade que só recebia os raios solares
através da placa fosforescente estava completamente enegrecida, exceto pela
porção correspondente a uma das moedas, da qual foi produzida uma silhueta
branca sobre (um fundo) negro.
Colocando apenas uma camada de papel vermelho fino, permitindo a
passagem dos raios solares, constatei que a porção do papel sensível que só
recebia as radiações solares após sua passagem pela camada fosforescente
enegrecia muito mais rapidamente do que a outra". [4].
As observações de Niewenglowski corroboravam as de Charles Henry: os
materiais fosforescentes pareciam emitir raios X, quando iluminados. Ainda
mais: Niewenglowski estuda o efeito da fosforescência do sulfeto de cálcio
colocado em um local escuro, depois de ter recebido a luz do Sol, concluindo
que também nesse caso o material continuava a emitir radiações capazes de
atravessar o papel negro:
"Pude também observar que a luz emitida pelo pó fosforescente,
previamente iluminado pelo Sol, na obscuridade, era capaz de atravessar várias
camadas de papel vermelho e obscurecer um papel sensível que dele estava
separado por essas camadas de papel". [5]. Passa-se mais uma semana.
Na sessão de 24/02/1896, Piltchikof anuncia que, utilizando uma substância
fortememente fluorescente dentro do tubo de Crookes, no local onde os raios
catódicos atingem a parede de vidro, observou um grande aumento da intensidade
dos raios X, permitindo a realização de radiografias em 30 segundos
(anteriormente, eram necessários vários minutos). A sugestão de Poincaré já
estava, portanto, resultando em importantes aplicações técnicas. Todos esses
resultados espantarão a qualquer físico moderno. Não se conhece, atualmente,
nenhum efeito semelhante a esse descrito por tais autores. As experiências não
deveriam ter proporcionado os resultados observados. O que aconteceu? Não se
sabe.
Nessa mesma sessão da Academia, aparece o primeiro trabalho de Henri
Becquerel sobre o assunto.
A contribuição de Henri Becquerel
Henri Becquerel pertencia a uma ilustre família de cientistas. Seu avô,
Antoine Becquerel, nascido em 1788, foi um importante investigador dos
fenômenos elétricos e magnéticos, tendo publicado um grande tratado sobre o
assunto. O pai de Henri, Edmond Becquerel (1821-1891), notabilizou-se por seus
estudos a respeito das radiações ultravioleta e dos fenômenos de fosforescência
e fluorescência. Especialmente de 1859 a 1861, estudara os sulfetos de cálcio,
de bário, de estrôncio e outros. Entre os materiais que estudou estavam
incluídos alguns sais de urânio [6].
No laboratório de seu pai, Henri Becquerel desenvolveu seu treino
cientifico e realizou suas primeiras pesquisas - quase todas sobre óptica e
muitas delas, no período de 1882 a 1897, sobre fosforescência. Entre outras
coisas, estudou a fosforescência invisível (no infravermelho) de várias
substâncias. Estudou, em particular, os espectros de fluorescência de sais de
urânio, utilizando amostras que seu pai havia acumulado ao longo dos anos.
Nada era mais natural do que o interesse de Henri Becquerel pelos raios
X e, mais particularmente, pela conjectura de Poincaré e pelos trabalhos de
Henry e Niewenglowski. De fato: parecia simplesmente que, além de poderem
emitir radiação visível e infravermelha, os corpos luminescentes podiam também
emitir raios X. Becquerel resolve fazer experimentos sobre o assunto.
Reproduziremos, abaixo, o texto completo da primeira nota de Henri sobre o
assunto, apresentada à Academia no dia 24/02/1896 (dois meses após a divulgação
da descoberta dos raios X):
"Em uma reunião precedente [da Academia de Ciências Francesa], Charles
Henry notificou que, ao se colocar sulfeto de zinco fosforescente no caminho
dos raios que saem de um tubo de Crookes, aumentava a intensidade das radiações
que penetram o alumínio. Além disso, Niewenglowski descobriu que o sulfeto de
cálcio fosforescente, comercial, emite radiações que penetram em substâncias
opacas. Esse comportamento se estende a várias substâncias fosforescente e, em
particular, aos sais de urânio, cuja fosforescência tem uma duração muito
curta.Com o sulfato duplo de urânio e potássio, de que possuo alguns cristais
sob a forma de uma crosta transparente, fina, realizei a seguinte experiência:
Envolve-se uma chapa fotográfica de Lumiére em duas folhas de papel negro
muito espesso, de tal forma que a chapa não se escureça mesmo exposta ao Sol
durante um dia. Coloca-se uma placa da substância fosforescente sobre o papel,
do lado de fora, e o conjunto é exposto ao Sol durante várias horas. Quando se
revela a chapa fotográfica, surge a silhueta da substância fosforescente, que
aparece negra no negativo. Se for colocada uma moeda ou uma chapa metálica
perfurada, entre a substância fosforescente e o papel, a imagem desses objetos
poderá ser vista no negativo.
As mesmas experiências podem ser repetidas colocando-se uma chapa fina
de vidro entre a substância fosforescente e o papel; e isso exclui a
possibilidade de qualquer ação química por vapores que pudessem sair da
substância ao ser aquecida pelos raios do Sol. Pode-se concluir dessas
experiências que a substância fosforescente em questão emite radiações que
penetram um papel opaco à luz e reduzem sais de prata [sensibilizam o papel fotográfico]". [7].
Note-se que Becquerel conhece os trabalhos anteriores de Henry e
Niewenglowski e que reproduz, sem grande alteração, o experimento do segundo.
Apenas testou uma nova substância - o sulfato duplo de uranila e potássio -
confirmando, também nesse caso, a hipótese de Poincaré.
Na semana seguinte (02/03/1896), d’Arsonval descreve ter obtido
radiografias utilizando uma lâmpada fluorescente e recobrindo os objetos a
serem radiografados com um vidro fluorescente contendo um sal de urânio.
Conclui nesse artigo que todos os corpos que emitem radiações fluorescentes
amarelo-esverdeadas são capazes de impressionar chapas fotográficas recobertas
por papel opaco à luz [8].
É nessa mesma sessão da Academia que Becquerel apresenta uma segunda
nota, que é comumente descrita como representando a descoberta da radioatividade.
Cortés Pla é um dos que comete esse erro, apesar de haver lido (e traduzido) os
artigos de Becquerel: "Uma semana depois, no dia 2 de março, a Academia
escuta o resultado de novas investigações que imortalizariam o nome de
Becquerel, já que nelas se descreve a existência de um novo fenômeno: a
radioatividade..." [ref. 6, p. 32].
Nessa segunda nota, Becquerel prossegue o estudo dos efeitos produzidos
pelo sulfato duplo de uranila e potássio. Varia o experimento anterior,
observando que as radiações emitidas por esse material são menos penetrantes do
que os raios X comuns. Nota também que a emissão da radiação penetrante ocorre
tanto no caso em que o material fosforescente é iluminado diretamente pelo Sol
quanto ao ser iluminado por luz refletida ou refratada. Observa também que,
mesmo no escuro, o material estudado sensibiliza chapas fotográficas (como o
sulfeto de cálcio de Niewenglowski). Eis a transcrição dessa parte do artigo:
"Insistirei particularmente sobre o seguinte fato, que me parece
muito importante e alheio ao domínio dos fenômenos que se poderia esperar
observar. As mesmas lamelas cristalinas, colocadas junto a chapas fotográficas,
nas mesmas condições, isoladas pelos mesmos anteparos, mas sem receber
excitação por incidência de radiação e mantidas na obscuridade, ainda produzem
as mesmas impressões fotográficas. Eis de que maneira fui levado a fazer essa
observação: dentre as experiências precedentes, algumas foram preparadas na
quarta-feira, 26, e na quinta-feira, 27 de fevereiro; e como, nesses dias, o
Sol apareceu apenas de modo intermitente, conservei as experiências que havia
preparado e coloquei as placas com seus envoltórios na obscuridade de uma
gaveta de um móvel, deixando as lâminas do sal de urânio em seu lugar. Como o
Sol não apareceu de novo nos dias seguintes, revelei as placas fotográficas a 1o de
março, esperando encontrar imagens muito fracas. Ao contrário, as silhuetas
apareceram com grande intensidade. Pensei logo que a ação devia ter continuado
na obscuridade e preparei a experiência seguinte:
No fundo de uma caixa de cartão opaco coloquei uma placa fotográfica;
depois, sobre o lado sensível, coloquei uma lamela de sal de urânio, lamela
convexa[com a parte central
mais alta] e que tocava a gelatina apenas em poucos pontos; então, ao
lado, na mesma placa, coloquei outra lâmina do mesmo sal, separada da gelatina
por uma fina lâmina de vidro. Após realizar essa operação, na sala escura, a
caixa foi fechada, então colocada dentro de outra caixa de papelão e por fim
dentro de uma gaveta.
Repeti o processo com um receptáculo fechado por uma folha de alumínio,
em que coloquei uma chapa fotográfica, e, do lado de fora, uma lamela do sal de
urânio. O conjunto foi fechado em uma caixa de papelão opaco e depois em uma
gaveta. Após cinco horas, revelei as placas e as silhuetas das lâminas
cristalinas apareceram em negro, como nas experiências precedentes, como se
tivessem se tornado fosforescentes pela luz. Em relação à lamela colocada
diretamente sobre a gelatina, praticamente não havia diferença entre os efeitos
nos pontos de contato e das partes da lamela que estavam separadas da gelatina
por cerca de um milímetro; a diferença pode ser atribuída às diferentes
distâncias das fontes das radiações ativas. A ação da lamela colocada sobre o
vidro estava um pouco enfraquecida, mas a forma da lamela foi muito bem
reproduzida. Finalmente, através da folha de alumínio, a ação foi
consideravelmente enfraquecida, mas apesar disso era muito nítida.
É importante notar que este fenômeno não parece dever ser atribuído a
radiações luminosas emitidas por fosforescência, já que após 1/100 de segundo
estas radiações se tornam tão fracas que são quase imperceptíveis.
Uma hipótese que surge muito naturalmente ao espírito seria a suposição
de que essas radiações, cujos efeitos possuem uma forte analogia com os efeitos
produzidos pelas radiações estudadas por Lenard e Roentgen, poderiam ser
radiações invisíveis emitidas por fosforescência, cuja duração de persistência
fosse infinitamente maior do que a das radiações luminosas emitidas por essas
substâncias. No entanto, as experiências presentes, sem serem contrárias a essa
hipótese, não permitem formulá-la. As experiências que estou desenvolvendo
agora poderão, espero, contribuir com algum esclarecimento sobre esse novo tipo
de fenômeno" [9].
Note-se que não há quase nada de novo nesse "novo tipo de
fenômeno". A única novidade é que a fosforescência invisível parecia durar
muito mais do que a fosforescência visível (o que não era, de modo algum,
contrário ao que se conhecia).
Em um outro artigo de revisão sobre os raios X, publicado nesse mesmo
mês, Raveau descreve os estudos de Charles Henry, Niewenglowski, Piltchikof,
d’Arsonval e Becquerel como sendo, todos eles, casos especiais do fenômeno
previsto por Poincaré e descoberto por Charles Henry [10].
Na semana seguinte (09/03/1896), em meio à quota usual de artigos sobre
raios X, Battelli e Gambasso estudam o papel de substâncias fluorescentes no
aumento do efeito dos raios de Roentgen. Troost estuda o sulfeto de zinco
fosforescente (blenda) e repete e confirma as observações de Charles Henry,
obtendo fortes imagens radiográficas ao excitar a fosforescência por meio da
luz do magnésio. Troost cita também os trabalhos de Niewenglowski e Becquerel.
Por sua vez, Henri Becquerel apresenta uma terceira comunicação. Nela, afirma
que a radiação emitida pelo sal de urânio estudado é capaz de descarregar um
eletroscópio (como os raios X). Era natural tentar repetir com essa radiação
todos os tipos de experimentos já realizados com a radiação de Roentgen, para
testar se eram iguais ou não. No entanto, a principal analogia que parecia
atuar na mente de Becquerel era outra: o fenômeno era muito semelhante à
fosforescência invisível (que ele havia estudado) na qual havia emissão de
radiação infravermelha. Ora, a radiação infravermelha é da mesma natureza da
luz e, ao contrário do que havia sido descrito no caso dos raios X, ela se
reflete e refrata. Becquerel estuda a radiação do sulfato de uranila e potássio
e conclui que ela se reflete em superfícies metálicas e se refrata no vidro
comum [11]. Sabe-se, atualmente, que essa radiação não se reflete, nem se
refrata no vidro.
No mesmo artigo, Becquerel descreve observações nas quais os sais de
urânio continuam a sensibilizar chapas fotográficas mesmo quando o material
fosforescente fica guardado na obscuridade durante 7 dias e observa: "Talvez
esse fato possa ser comparado à conservação indefinida, em certos corpos, da
energia que absorveram e que é emitida quando são aquecidos, fato sobre o qual
já chamei atenção em um trabalho [de 1891] sobre a
fosforescência pelo calor" [12]. Nota-se que Becquerel continua a
se basear nos fenômenos que já conhece, não reconhecendo nada de
fundamentalmente novo naquilo que estuda.
No mesmo artigo, Becquerel estuda outros materiais fosforescentes.
Alguns deles são sais de urânio. Com todos eles são observados os mesmos
efeitos. Com o sulfeto de zinco, ao contrário do que Henry e Troost haviam
observado, Becquerel não nota nenhum efeito. No entanto, Becquerel faz
observações na obscuridade - e Henry e Troost haviam feito experimentos
enquanto o sulfeto de zinco era iluminado. Outros materiais fosforescentes
(sulfeto de estrôncio e de cálcio) são examinados. O primeiro não proporciona
nenhum efeito, no escuro. Uma amostra de sulfeto de cálcio que produzia
fosforescência alaranjada também não produz efeitos, mas dois sulfetos de
cálcio com luminescências azul e azul-esverdeado "produziam efeitos
muito fortes, os mais intensos que já obtive nessas experiências. O fato
relativo ao sulfeto de cálcio azul está de acordo com a observação do Sr.
Niewenglowski através do papel negro." [13].
Por nossos conhecimentos atuais, é muito difícil compreender como podem
ter ocorrido os efeitos descritos por Becquerel. As radiações emitidas pelos
sais de urânio, na verdade, não se refletem nem se refratam; e o sulfeto de
cálcio não deveria emitir radiações semelhantes às dos sais de urânio (e, pior
ainda, mais fortes!). Ou existiram efeitos que não podem ser explicados por
nossos conhecimentos, ou Becquerel se enganou em suas observações - e, neste
caso, pode ter sido induzido por suas expectativas teóricas a ver fenômenos
inexistentes. A menos que essas experiências sejam repetidas, com os mesmos
materiais por ele utilizados, não será possível, no entanto, excluir a
existência de fenômenos físicos atualmente ignorados e diferentes da
radioatividade.
Passam-se duas semanas e Becquerel publica novo trabalho (23/03/1896).
Nele, descreve observações de que alguns compostos de urânio que não são
luminescentes também produzem os efeitos antes descritos. Assim sendo, essa
fosforescência invisível parece não ter ligação com a fosforescência ou
fluorescência visível. Mas parece, segundo Becquerel, tratar-se realmente de um
caso de fosforescência, pois ele afirma que a radiação aumenta quando os
cristais que estavam no escuro são expostos à luz solar ou quando são
iluminados por uma descarga elétrica [14] - novamente, o fenômeno descrito não
deveria ocorrer, pelo que sabemos. Há outra observação curiosa, neste artigo.
Becquerel afirma que as amostras de sulfeto de cálcio, que haviam produzido
efeitos no escuro, agora não impressionavam mais as chapas fotográficas.
Como já se viu, Becquerel acreditava que a radiação que estudava era semelhante
à luz, pois se refletia e refratava, ao contrário dos raios X. No seu artigo
seguinte [15], descreve experiências com finas lâminas de turmalina e afirma
haver notado efeitos de polarização de sua radiação (outro resultado
estranho!). Continua também a afirmar que o efeito se torna mais forte quando o
material é excitado pela luz (e repete isso também no trabalho seguinte).
Passam-se agora 7 semanas. Só então Becquerel apresenta nova
comunicação. Depois de ter observado que todos os compostos de urânio
(luminescentes ou não) emitiam essas mesmas radiações invisíveis, Becquerel
resolve testar o urânio metálico. Obtém uma amostra preparada por Moissan
(químico que nesse mesmo ano havia isolado o metal) e verifica que ele também
emite a radiação. Ora, isso poderia ter mostrado que não se tratava de um
fenômeno de fosforescência e sim algo de outra natureza. Mas Becquerel conclui
que esse é o primeiro caso de um metal que apresenta uma fosforescência
invisível [16]. Seria natural, a partir daí, pesquisar a existência de outros
elementos que emitissem radiações semelhantes, mas Becquerel não o faz. Após
esse trabalho, de 18 de maio, ele parece se desinteressar e abandona esse
estudo.
Os dois primeiros anos
Como se pode perceber pela descrição feita até aqui, os trabalhos de
Becquerel não estabeleceram nem a natureza das radiações emitidas pelo urânio
nem a natureza sub-atômica do processo. Seu trabalho, originado, como o de
Charles Henry e outros, pela hipótese de Poincaré, era apenas um dos muitos, da
época, que apresentavam resultados de difícil interpretação. Visto no contexto
da época, eram pesquisas que não tiveram o impacto nem a fecundidade da
descoberta dos raios X.
Poucos pesquisadores se dedicaram ao estudo dos "raios de
Becquerel" ou "raios do urânio" até início de 1898. Por um lado,
os próprios compostos luminescentes do urânio (ou o urânio metálico) eram de
difícil obtenção. Por outro lado, Becquerel parecia ter esgotado o assunto.
Além disso, muitos outros fenômenos anunciados na mesma época desviavam a
atenção e apontavam igualmente para aspectos delicados desse tipo de estudos
[17].
No Japão, em 1896, Muraoka investigou se certos vermes luminescentes
eram capazes de emitir radiações invisíveis penetrantes, capazes de
sensibilizar placas fotográficas. Parecia que sim, mas os resultados eram
estranhos: o efeito só surgia quando os vermes eram mantidos úmidos e quando
havia um cartão entre eles e a placa fotográfica. Concluiu-se, depois, que o
efeito era devido apenas à umidade (pois papel umedecido produzia o mesmo
resultado). No mesmo ano, observou-se que algumas placas metálicas recentemente
polidas (de zinco, magnésio e cádmio) também sensibilizavam chapas fotográficas
[18]. Um pesquisador norte-americano, McKissic, divulgou no mesmo ano que
muitas outras substâncias pareciam emitir raios de Becquerel: cloreto de lítio,
sulfeto de bário, sulfato de cálcio, cloreto de quinina, açúcar, giz, glicose e
acetato de urânio. Várias outras alegações semelhantes surgiram no mesmo
período - quase todas sem fundamento. Tudo isso ajudava a confundir a situação.
Em um artigo de revisão do assunto publicado em 1898, Stewart descreveu
todos os tipos de trabalhos publicados na época. Chegou à conclusão
(provavelmente a mais aceita, na época) de que os raios de Becquerel eram ondas
eletromagnéticas transversais (como a luz) de pequeno comprimento de onda e que
o processo de emissão era um tipo de fosforescência [18]. Repete os resultados
de Becquerel relativos à reflexão, refração e polarização dos raios de urânio e
o aumento de intensidade da radiação após exposição à luz. Adota,
essencialmente, a mesma concepção que Becquerel. É verdade que, em 1897,
Gustave le Bon havia repetido os experimentos de Becquerel e não havia notado
nenhum sinal de reflexão, refração ou polarização [19], mas ninguém lhe deu
atenção. Todos imaginaram que se tratava de um tipo de radiação ultravioleta.
Pode-se dizer que, de maio de 1896 ao início de 1898, esse campo de
estudos ficou estagnado. O único resultado novo, durante esse tempo, foi o de
que a radiação do urânio permanecia forte ao longo de meses, apesar de não
haver recebido luz. Embora Becquerel ainda afirmasse que a excitação pela luz
aumentava a radiação emitida, Elster e Geitel não encontraram esse efeito (que,
é claro, não existe).
A descoberta de novos materiais radioativos
No início de 1898, dois pesquisadores, independentemente, tiveram a ideia
de tentar localizar outros materiais, diferentes do urânio, que emitissem
radiações do mesmo tipo. A busca foi feita, na Alemanha, por G.C. Schmidt e, na
França, pela Madame Curie. Em abril de 1898, ambos publicaram a
descoberta de que o tório emitia radiações, como o urânio. O método de estudo
não foi fotográfico e sim com o uso de uma câmara de ionização, observando-se a
corrente elétrica produzida, no ar, entre duas placas eletrizadas, quando se
colocava um material que emitia radiações entre as placas. Esse método de
estudos era mais seguro do que o uso de chapas fotográficas, já que estas, como
vimos, podem ser afetadas por muitos tipos de influências diferentes.
A radiação emitida pelo tório era observada em todos os seus compostos
examinados, como ocorria com o urânio. Ela produzia efeitos fotográficos e era
um pouco mais penetrante do que a do urânio. Schmidt afirmou ter observado a
refração dos raios do tório (como Becquerel fizera anteriormente) mas não
conseguiu notar nem reflexão nem polarização dos raios.
Marie Curie estudou vários minerais, além de substâncias químicas puras.
Notou, como era de se esperar, que todos os minerais de urânio e de tório
emitiam radiações. Mas observou um fato estranho:
"Todos os minerais que se mostraram ativos contêm os elementos
ativos. Dois minerais de urânio - a pechblenda [óxido de urânio] e a
calcolita [fosfato de cobre e uranila] são muito mais ativos do
que o próprio urânio. Esse fato é muito notável e leva a crer que esses
minerais podem conter um elemento muito mais ativo do que o urânio. Reproduzi a
calcolita pelo processo de Debray com produtos puros; essa calcolita artificial
não é mais ativa do que outros sais de urânio" [20].
Nesse mesmo trabalho, Marie Curie chama a atenção para o fato de que o
urânio e o tório são os elementos de maior peso atômico (dos que eram
conhecidos). Especula também sobre a causa do fenômeno. Diante da enorme
duração da radiação, parecia absurdo, na época, que toda a energia emitida (que
parecia infinita) pudesse provir do próprio material. Marie Curie supõe que a
fonte seria externa, ou seja, que todo o espaço estaria permeado por uma
radiação muito penetrante, imperceptível, que seria absorvida pelos elementos
mais pesados e reemitida sob uma forma observável.
A descoberta do efeito produzido pelo tório deu novo impulso à pesquisa
dos "raios de Becquerel". Agora, percebia-se que esse não era um
fenômeno isolado, que ocorria só no urânio. Marie Curie é quem dá a esse
fenômeno o nome "radioatividade":
"Os raios urânicos foram frequentemente chamados raios de
Becquerel. Pode-se generalizar esse nome, aplicando-o não apenas aos raios urânicos,
mas também aos raios teóricos e a todas as radiações semelhantes.
Chamarei de radioativas as substâncias que emitem raios
de Becquerel. O nome de hiperfosforescência que foi proposto
para o fenômeno, parece-me dar uma falsa ideia de sua natureza". [21].
Vê-se que Marie Curie estava consciente de que se tratava de um fenômeno
muito mais geral.
Poucos meses depois da descoberta do efeito produzido pelo tório, Marie
e Pierre Curie apresentarão um trabalho de ainda maior importância [22]. No
trabalho anterior, Marie Curie havia sugerido que a pechblenda talvez
contivesse outro material radioativo, desconhecido. Ela se empenha no trabalho
de tentar isolar essa substância. Para isso, dedica-se a um trabalho de química
analítica, separando progressivamente os constituintes da pechblenda, testando-os
pelo método elétrico, de modo a separar as frações radioativas das inativas.
Primeiramente, partindo da pechblenda que era duas vezes e meia mais ativa do
que o urânio, foi feita a dissolução do mineral em ácido. Depois, borbulhou-se
ácido sulfídrico (H2S) pelo líquido, havendo formação de vários
sulfetos insolúveis, que se precipitavam. O urânio e o tório permaneciam
dissolvidos. O precipitado era muito ativo. Adicionando-lhe sulfeto de amônia,
os sulfetos de arsênico e de antimônio (não ativos) se dissolvem. O resíduo
passa por outros processos de separação. Por fim, o material ativo fica unido
ao bismuto, não sendo separável dele pelos processos usuais. Não era, portanto,
nenhum elemento conhecido. Através de processos de sublimação fracionada foi possível
obter um material (ainda unido ao bismuto) que era 400 vezes mais ativo do que
o urânio puro. O casal Curie sugere:
“Cremos, portanto, que a substância que retiramos da pechblenda contém
um metal ainda não identificado, vizinho ao bismuto por suas propriedades
analíticas. Se a existência desse novo metal for confirmada, propomos dar-lhe o
nome de polônio, nome do país de origem de um de nós". [22].
Não se pode dizer que estivesse, de fato, estabelecida a existência de
um novo elemento. O suposto novo metal se comportava como o bismuto e não tinha
raias espectrais que pudessem ser notadas. Houve por isso certo ceticismo em
relação a essa descoberta, inicialmente.
Em artigo escrito após o trabalho relativo ao polônio, Marie Curie faz
uma revisão dos conhecimentos sobre o assunto [21]. Nele, coloca em dúvida a
existência de reflexão, refração e polarização dos raios de Becquerel e nega,
com base nos estudos de Elster e Geitel, a possibilidade de intensificar a
radioatividade pela exposição ao Sol. Marie Curie defende claramente a ideia de
que a radioatividade é uma propriedade atômica.
Na última reunião de 1898 da Academia de Ciências, os Curie e Bémont
apresentavam um novo trabalho [23]. Nele, apresentam evidências de um novo
elemento radioativo, quimicamente semelhante ao bário, extraído também da
pechblenda. Também nesse caso, não foi possível separar o novo elemento do
metal conhecido; mas foi possível obter um material 900 vezes mais ativo do que
o urânio. Além disso, desta vez a análise espectroscópica permitiu notar
uma raia espectral desconhecida. Os autores do artigo dão a esse novo elemento
o nome de "rádio", por parecer mais radioativo do que qualquer outro
elemento.
Etapas posteriores
Faltava muita coisa, ainda, a ser compreendida. O que eram as radiações
emitidas: iguais aos raios X, ou não? Até essa época, parecia que sim. De onde
saía a energia desprendida desses materiais? Por que alguns elementos são
radioativos e outros não? Nada disso havia sido esclarecido. Não havia, também,
suspeita de que a radioatividade acarretava transformações de um elemento
químico em outro. O nome "radioatividade" existia, mas não se
conhecia ainda o complexo fenômeno ao qual damos hoje esse nome.
A história restante é longa e rica. Não é possível descrevê-la em
detalhes, aqui. O objetivo central deste capítulo era mostrar que Becquerel
ficou longe de estabelecer a existência da radioatividade, tal como a
concebemos hoje. Vamos, por isso, apenas indicar alguns dos episódios
posteriores, para dar uma idéia sobre o que faltava ainda descobrir [24].
A natureza e diversidade das radiações emitidas por materiais
radioativos foi estabelecida gradualmente. No início de 1899, Rutherford notou a existência de dois tipos de radiação de urânio - uma mais
penetrante e outra facilmente absorvida. Chamou-as de alfa (a menos
penetrante) e beta. No entanto, imaginou que ambas eram diferentes tipos de
raios X. No final de 1899, Geisel observou que as radiações de polônio eram
desviáveis por um ímã. Esses raios não podiam, portanto, ser raios X. O casal
Curie verificou que alguns raios eram defletidos pelo ímã e outros não. Os que
eram defletidos correspondiam à radiação alfa de Rutherford. O
sentido da deflexão mostrou que eram semelhantes aos raios catódicos, ou seja,
dotados de carga elétrica negativa. Posteriormente, o casal Curie observou, por
medidas elétricas, que essa radiação transportava de fato uma carga negativa. A
radiação não defletida foi identificada como radiação gama (que, na
verdade, é pouco desviada, por sua grande razão massa/carga).
Becquerel, nessa fase, fez alguns estudos sobre a deflexão dessas
radiações. Tentou defletir a radiação gama por um campo elétrico, mas não
conseguiu, inicialmente. Isso foi conseguido em 1900, por E. Dorn. No mesmo
ano, Villard descobriu que os raios não desviáveis eram de dois tipos: os raios alfas (pouco
penetrantes) e outros raios muito penetrantes, que foram denominados
"raios gama". Apenas em 1903, Rutherford observou que a
radiação alfa podia ser defletida elétrica e magneticamente,
verificando então tratar-se de partículas com carga positiva. Só então ficou
mais clara a noção a respeito da natureza dessas três radiações.
Outro aspecto da radioatividade - a transformação dos elementos
radioativos - emergiu também aos poucos. Em 1899, Rutherford observou a
existência de uma emanação radioativa do tório. Dorn verificou que o rádio
também produzia uma emanação semelhante. Depois de vários meses, verificou-se
tratar-se de um novo elemento químico, gasoso (radônio). Esse gás estava
sendo produzido pelo material radioativo. Além disso, os Curie
haviam notado, no final de 1899, que o rádio podia tornar radioativos os corpos
próximos. No ano seguinte, Rutherford descobriu que a radioatividade induzida
era devido a um depósito criado pela emanação gasosa. No entanto, esse depósito
não era idêntico à emanação.
Descobriu-se também que a emanação e o depósito perdiam rapidamente suas
radioatividades, o que mostrou tratar-se de uma mudança atômica gradual. Após
esses e outros estudos, Rutherford e Soddy apresentaram a teoria das transformações
radioativas em 5 artigos publicados de novembro de 1902 a maio de 1903. Com
esses trabalhos, as linhas gerais da nova visão sobre a radioatividade haviam
já sido estabelecidas. Muitos aspectos foram esclarecidos nos anos
seguintes.
Comentários finais
Mais do que diminuir o papel de Becquerel na descoberta da
radioatividade, o objetivo deste capítulo foi mostrar a grande dificuldade
existente no estabelecimento de fenômenos que não são esperados teoricamente. É
fácil observar o que se prevê - aliás, como se viu, pode-se observar o que foi
previsto até quando a previsão é falsa. Muito mais difícil é ver aquilo que
contraria todas as expectativas.
O estudo aprofundado de episódios como esse deveria fazer parte da
educação de todo cientista experimental, pois a visão estereotipada do
experimentador rebaixa e banaliza o trabalho experimental - quando, na verdade,
o bom trabalho experimental é extremamente difícil, criativo e instigante,
desde que se tenha coragem de enfrentar, no laboratório, fenômenos que se
recusam a respeitar as teorias estabelecidas.
Apêndice
Há um livro editado na Alemanha, que afirma ter sido Marie Curie,
assistente de Becquerel. Por tudo que sabemos, a informação é surpreendente. O
capítulo que acabamos de ver não estabelece qualquer relação de trabalho entre
essas duas personalidades, e não temos conhecimento de qualquer trabalho em
conjunto. De qualquer forma, vale a pena reproduzir aqui o texto mencionado:
"Nas pesquisas cuidadosamente elaboradas por Becquerel o erro e
a coincidência não mais apareceram. Os resultados destes estudos o autorizavam
a concluir que os fenômenos observados nada tinham a ver com fluorescência, mas
com certas propriedades desconhecidas dos sais de urânio. Becquerel observou
então, que a ação dos sais de urânio não dependia de seu estado físico ou
químico e que a radiação, durante algum tempo conhecida como "radiação
Becquerel", ionizava o ar exatamente da mesma maneira como a radiação de
Roentgen. Entretanto, no ano seguinte acabou o interesse de Becquerel por esta
radiação. Ele preferiu concentrar seus esforços no efeito Zeeman do
qual ele esperava mais. O prosseguimento de seus estudos sobre as radiações ele
o confiou à sua Assistente Marie Curie-Sklodowska." (Agradeço
ao Prof. J.I. Kunrath (IF-UFRGS) por chamar a atenção para esta referência
[SIMONYI, K. Kulturgeschichte de Physik, Frankfurt: Verlag Harri Deutsch Thun,
p. 481], bem como por traduzir o texto usado neste apêndice).
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